O fogo entre o passado e o futuro1


Nathalia Colli


1 Referência ao livro de Hannah Arendt Entre o passado e o futuro.



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Quinhentas e quarenta e nove mil pessoas mortas pelo coronavírus no Brasil, a cotação do dólar não pára de subir, já se somam milhões de desempregados e milhões de desabrigados. Manchete central “Estátua de Borba Gato é incendiada na zona sul de São Paulo, dois foram presos”. Isto é um print screen de uma tela de jornal2 do dia 24 de julho de 2021. Ninguém saiu ferido. Exceto os dois presos. Os pretos.



2 Jornal da Cultura da noite de 24 de julho de 2021
3 Carlos Drummond de Andrade. Museu da inconfidência
4 Luiz Ruffato, Inferno provisório
5 Essas são algumas das muitas avaliações encontradas sobre o monumento de Borba Gato no site da google Local guide



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Toda história é remorso3,
assim no princípio, assim no fim (completa outro mineiro)4. Todo passado reelaborado só se torna político em seu ato mesmo de presentificação, do contrário é ele parte da nau do esquecimento a qual chamamos de história. Lembrar não é um ato heróico quando quantitativo. Borba Gato sujeito não existe, Borba Gato é um monumento bem avaliado pelos moradores do bairro da zona sul de São Paulo, um ponto de referência para se chegar à padaria, um ponto onde pára o ônibus, onde a estação de metrô devorou o asfalto.5 


6 Walter Benjamin. Passagens II

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Um documento de cultura é sempre um documento de barbárie,6 o inverso, porém, nunca é possível, dessa frase não se pode dizer que tanto faz, vice-versa. Um documento de barbárie em hipótese alguma será um monumento de cultura; da cultura se diz civilidade, progresso, sua antítese não pode retornar à origem sem que antes ela se levante enquanto contraponto: a barbárie nunca será cultura — bradam os agentes da civilização. Borba Gato é um marco da construção do imaginário nacional, não temos como definir a ruptura exata entre a figura do caipira Mazzaropi e dos bandeirantes empobrecidos pelo próprio processo que fundaram. A escultura de Borba Gato em Santo Amaro foi posta em pé pelas mesmas mãos modernistas de Júlio Guerra, artista também responsável pela Mãe preta, obra monumental do Largo do Paissandu; lugar, hoje, já arrasado pela consequência inevitável do programa civilizatório brasileiro, mas disso não se pode levantar uma escultura. Embora presente, o colapso é sempre um por vir.

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 25 de Maio de 2020, um mês após o alerta mundial da covid 19, Georg Floyd é brutalmente assassinado por um policial branco em Minneapolis, EUA. Sufocado por um policial branco em frente às câmeras de celulares e testemunhas que rapidamente espalharam a imagem nas redes de um homem negro rendido, sendo assistidamente assassinado por um policial branco sorridente. Sendo assistidamente assassinado por um policial branco, compartilhado em redes, um homem negro sufocando implorando em rede global, assistidamente assassinado, ainda pode sussurrar “I can’t breathe”. Isto não é uma imagem. Isto é um passado que ressurge frontalmente no presente com a força política de incendiar um país. A partir daqui, milhares de estátuas de potencial estético ocidentalizado ou não são derrubadas, bem como  os supermercados são saqueados, as redes interrompidas, os carros de polícia incendiados. O bunker é revisitado pelo presidente da república dos estados unidos da américa não pelo colapso viral, tampouco por um alarme nuclear: o bunker é o cavalo de Adolphe Thiers em disparada. Os oprimidos instalam um espaço de emergência provisório e reivindicam sua reelaboração da história.


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O provisório dos oprimidos só pode se reverter num processo incendiário maior quando compreende que dele se espera a permanência. Mas a permanência do provisório não é um momento fortuito da história, tampouco um momento que se pode prever: o provisório, quando político, não admite a normalidade da estrutura econômica, não pede espaço, não exige nenhuma parte como o leão7. O provisório devora a permanência da normalidade e para tanto precisa se manter no limite de tensão incalculável entre permanecer e ruir.
7 A parte do Leão é uma alusão clássica às fábulas de La Fontaine.


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Ucrânia, 28 de Setembro de 2014. A maior estátua do ex-líder soviético, Vladimir Lênin, é derrubada em Kharkiv. Desde o final de 2013, o governo pró-ocidente da Ucrânia regulamentou a retirada dos monumentos do ex-líder comunista como parte de um processo de “descomunização” do país. Nos jornais se lê “Estátuas do ex-líder soviético são retiradas, mas governo assume que ainda não sabe o que pôr no lugar”. Na dúvida, a Ucrânia optou pela construção de monumentos cristãos e pela imagem de Darth Vader. Não se sabe toda a verdade da sinalização ao Ocidente ao se constatar a opção ucraniana dos seus novos monumentos, o que se sabe é que a chamada descomunização foi iniciada por protestos populares de quem sente o passado soviético como uma chaga. A razão não importa, Lênin também é o nome dado à usina nuclear de Chernobyl.8 Lênin na Ucrânia é o nome do progresso unilateral da modernização. O colapso moderno também ceifa a cabeça de Lênin. Embora Putin não seja um adjetivo comunista. De quanto presente a imagem do passado precisa para incendiar um país?

8 A sequência de imagens descritas nesse trecho são parte do livro Looking for Lenin, do fotógrafo suíço Niels Ackermann




9 Franz Kafka. Ele tem dois adversários


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A história do progresso ou o progresso da história não tem dois lados. Sua espacialização é retilínea, onde as forças incertas entre passado e futuro vociferam na cabeça do presente.9 A linha do tempo é agora um tornado, um ciclone crescente onde todos os tempos se mesclam no esvaziamento de qualquer signo. Para que o passado se presentifique é preciso que este apareça enquanto comunidade imagética, é preciso que este se transforme num reconhecimento coletivo, sem o qual as labaredas de um incêndio não podem atingir a distância ciclônica do futuro.

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Narrar um povo enquanto tradição e continuidade. Sua descontinuação, seu bloqueio narrativo é histórico e labiríntico. Não há Pandora que proteja seus perigos e tesouros numa caixa, não há Ariadne que restabeleça seu fio. O fio está rompido. A memória de um povo só pode ser acessada genuinamente de maneira involuntária: toda revolta é mistério e matéria. Um monumento é uma imagem 3D. Como toda imagem reprodutível, ela esfacela nossa imaginação do passado, nos torna incapaz de fabular com a imagem do futuro. Estamos amarrados a ela, destinados à sua falsa unidade. Uma fotografia de guerra não nos humaniza,10 antes, normatiza a morte em massa. Um monumento que se deteriora na periferia de São Paulo, nos fala menos sobre Borba Gato, sujeito, diz mais sobre o espaço e o tempo daquela imagem dissociada de seu conteúdo de origem. Na narrativa modernizante, porque não, modernista, a colônia foi metamorfoseada em república. E esta verdade não é uma solução. A metamorfose entre ditadura e democracia persegue este mesmo ritmo.

10 Susan Sontag. Diante da dor dos outros.

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O poder nuclear de atear fogo ao mundo não tem um mensageiro ou uma imagem de seu potencial: a destruição irreversível da humanidade não pode ser imaginada. Fogo e fumaça se transformam em imagem de guerra, a Amazônia não nos deixa mentir, os protestos mundiais da última década também não. Um novo fio se arma, agora como um cabo de guerra numa brincadeira infantil: de um lado os incendiários do mundo tal como ele é hoje, de outro os incendiários contra o mundo, gozando com seu potencial de pirotecnia explosiva, sorrindo para o abismo. O ponto de encontro que serviu para estes opositores como divisão de forças não foi a esperança ou os programas divergentes, mas sua capacidade de farejar o niilismo contra a ordem. Espécie peculiar de niilismo dos bárbaros. Não é a negação da negação11 que ateia fogo aos corações dos povos, é a negatividade imanente ao existente que agora se impõe como política. Não a negação. O negativo. De um lado os que gozam com o fim, do outro o fim que se impõe como último recurso.

11 Karl Marx. Manuscritos econômicos e filosóficos.

12 A ideia de niilismo aqui empregada pode ser melhor observada em “O Deus dividido”, texto do Coletivo Chuang, embora o texto de Chuang não esgote nem de longe o que um novo ideal de niilismo pode nos sugerir.


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A imagem do juízo final é uma labareda onde o fogo impediu que se reconheça o vencedor, aquele atrás, em pé. O juízo final entre os que pretendem barrar o fim e aqueles que pretendem acelerar o fim. Em curso segue o automato da história, que agora imita esteticamente um foguete coreano em direção ao abismo. O juízo final dos homens está na disputa pelos seus meios de destruição. Caso nós possamos testemunhar ainda esta imagem, caso se tire fotografias e também se retire lições, nós saberemos quais dos niilistas saíram vitoriosos.12
Bibliografia.

N.a: Todos os textos aqui enumerados não são responsáveis pelos devaneios da autora. Apenas foram base à prosa que se descolou do chão enquanto um laboratório imagético e nada mais. Tanto por isso não possuem nenhuma responsabilidade na insuficiente elaboração que aqui se apresenta.





Ackermann, Niels. Looking for Lenin. London: Fuel Publishing, 2017.

https://nack.ch/lost-in-decommunisation-lenin-ukraine

Andrade, C. D. Claro Enigma. São Paulo: Companhia das Letras, 2012

Arendt, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2014.

Benjamin, Walter. Arte e política. Magia e técnica. São Paulo: Brasiliense, 2009.

______________. Passagens II. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2019.

Chuang. O deus dividido https://bibliotecaanarquista.org/library/chuang-o-deus-dividido

Kafka, Franz. Aforismos. Trad. Otto Maria Carpeux. São Paulo: Revista Bula, 2013. Publicado originalmente em 1943, na extinta Revista do Brasil.

Marx, K. Manuscritos econômicos-filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

Sontag, S. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Ruffato, Luiz. Inferno provisório. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.