ARCO


Frederico Filippi



Tuirá Kayapó durante audiência sobre a Usina Kararaô. Foto:  Protássio Nêne/Estadão Conteúdo-1989 com intervenção do autor.



O arco do desmatamento é o nome que se dá atualmente à forma da fronteira industrial e agropecuária de avanço rumo ao noroeste amazônico, e que teve seu início na década de 70. É chamado assim porque hoje é composto, segundo o Ipam, “de 500 mil km2 de terras que vão do leste e do sul do Pará em direção oeste, passando por Mato Grosso, Rondônia e Acre”.

O arco formado no mapa é um incômodo à imunidade da forma. É uma abstração de território, de fronteira, ninguém consegue ver esse arco a olho nu. Sua existência como figura geométrica é uma inferência, porque é um conjunto de formas tão irregulares que o arco só é arco com certa distância, assim como todo segmento de círculo, sem a mesma distância, é uma reta.

O arco pressiona sua entrada nesta rede colossal de florestas e já subjugou uma quinta parte da sua extensão. Pode ser um dos segmentos de uma onda maior, de epicentro incerto e que reverbera há alguns séculos, como as navegações que se deram pelas correntes marítimas ou os movimentos migratórios que se expandiam de forma peristáltica pelos terrenos. Avançando e retrocedendo, empurrando com pulso e ritmo.

Este arco pode ser descrito em termos de extensão, de espessura, materialidade, mas também pode ser descrito pela sua impermanência, indeterminação e mutabilidade. É impermanente e varia de intensidade e frequência. Em caso de recuo do avanço, dependemos do processo florestal de recuperação de mata secundária que pode levar em torno de 70 anos. Em caso de aprofundamento do processo exploratório, a próxima passagem dos satélites do SIVAM, Inpe ou outro dará a ver o paralelepípedo anterior transformado em uma composição de novos losangos, semicírculos, (menos frequentes na porção brasileira da Amazônia) retângulos e polígonos irregulares aglutinados com a velocidade a qual uma matilha de tratores é capaz de desenhá-los.




[1] SIVAM – Sistema de Vigilância da Amazônia para monitoramento por satélite no território da Amazônia Legal instalado na década de 90
[1]INPE – Instituto de Pesquisas Espaciais

Figura 4: Tilted Arc, Richard Serra, 1981. Escultura em aço (36,6m X 3,6 m). Federal Plaza, Nova Iorque, EUA. Tilted Arc, Richard Serra, 1981. Escultura em aço (36,6m X 3,6 m). Federal Plaza, Nova Iorque, EUA.

















Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto







***

Tuirá Kayapó esfrega seu facão no rosto de José Antônio Muniz, diretor da Companhia Eletronorte, em uma audiência em Altamira por ocasião de um protesto em 1989 contra a usina de Kararaô, hoje Belo Monte. O engenheiro tem sua bochecha pressionada pela lâmina do facão, que forma um arco que se estende do braço da mulher à ponta da chapa. Na parte central da foto, acima do encontro da mão junto ao cabo, vê-se os olhos arregalados de uma figura. Sob o atrito do metal junto à pele, de mãos cruzadas sobre a mesa, José Antônio mantém os olhos cerrados. É possível deduzir por outras imagens de arquivo que o facão de Tuíra tem o fio gasto.





Metalografia de liga de aço utilizada em facões e terçados





























Não é possível traçar uma reta entre dois pontos no planeta. Uma linha reta em um mapa é uma linha curva em um terreno. Uma linha reta no terreno é uma curva em um mapa. A importância da cartografia na nossa relação com o mundo permitiu a propagação de arcos. Uma vez desenhadas as linhas no mapa, um senso de divisão e orientação se instala.



























Dentro de uma floresta, toda linha reta é um nó. Recusar o nó, e assim produzir um arco. Com o arco, separar dois campos, duas visões irreconciliáveis, antes do arco, e depois do arco.


De dentro do arco, de frente para a concavidade:


Côncavo

O que avança;


CADA AVANÇO GUARDA DÍVIDA COM O QUE PRECEDE

[3]












A prerrogativa de permanecer oculto é a ofensa da concavidade à convexidade.























De dentro do arco, de frente para a convexidade:

Convexo:


Uma ideia de uma consciência inaudita e difusa, perdida aos olhos de um recém-chegado em meio à camuflagem da floresta: dizem que uma onça te vê há muito tempo quando você a vê. E quando você não vê também. O côncavo é o que o convexo deseja ver, por isso ele lança tratores, estradas, satélites, antropólogos, biólogos e artistas.









O côncavo é confundido com um vácuo: provavelmente desabitado. O contato entre duas coisas, microscopicamente, é intermediado por uma molécula de ar. Esta molécula de ar é um abismo entre a propagação da onda – o arco – e o que ela vai digerir.




CADA AVANÇO GUARDA DÍVIDA COM O QUE PRECEDE







[3]ALŸS, Francis. In a Given Situation. São Paulo: Cosac Naify, 2010.




Mapa Etnohistórico dos povos indígenas e troncos linguísticos realizado por Curt Nimuendaju, versão final 1944, publicado pelo IBGE em 1981. O mapa retrata a ocupação do território em forma de arcos, ao invés de territórios contingentes.





O ideal do arco é não ser mais arco, é encontrar do outro lado do globo o epicentro da sua onda. Richard Serra disse, a respeito do seu Tilted Arc e sua controvérsia (incômodo), que remover o trabalho é destruir o trabalho[4]. O incômodo, da parte de Serra, era o uso da escultura pública como uma forma de acomodar o status quo do design arquitetônico e promover uma espécie de apaziguamento. Remover o arco é condição de existência do arco. Os dois finais do arco são uma corda tensionada com uma flecha apontada:




Frederico Filippi. Retrasados, 2021. Mármore. 42 cm de diâmetro x 17 cm altura.
Coleção KIOSKO, Santa Cruz de la Sierra. 






[4] Carta de Richard Serra para Donald Thalacker, datada de 1º de janeiro de 1985, publicado por Clara Weyergraf-Serra e Martha Buskirk (eds.) em The Destruction of Tilted Arc: Documents (Cambridge: MIT Press, 1991), p. 38.











“O que terá se passado? É preciso supor que alguma coisa entortou a flecha do tempo, uma potência antiga e também imprevisível que de início preocupou, depois incomodou, até que finalmente dispersou os projetos dos Modernos de outrora. Como se a expressão “mundo moderno” tivesse se tornado um oxímoro. Ou bem se é moderno e não se tem mundo sob os pés, ou bem há um mundo verdadeiro, mas ele não é modernizável. É o fim de um certo arco histórico.”[5]






[5] LATOUR, Bruno. Onde Aterrar? - Como Se Orientar Politicamente no Antropoceno. Ed. Bazar do Tempo, São Paulo, 2020. P. 30








Paralaxe: Sudoeste 

Arquivo O Globo











Enquanto no fim dos anos 60 artistas estão se isolando nos desertos norte-americanos, movendo enormes quantidades de terra com máquinas e milhares de dólares e questionando conceitos de paisagem, indústria, tempo, materialidade e valor, tratores e retroescavadeiras (provavelmente semelhantes às que Robert Smithson chamou de pincel de Robert Morris[7]) estão abrindo retas imensas em um território absolutamente úmido, onde não se vê o horizonte com os pés no chão, talvez nem mesmo três metros à frente, e, no entanto, é considerado infinito.









São as estradas Transamazônica (BR 320), a Cuiabá-Santarém (BR 363), a Perimetral Norte (BR-210) e a Rodovia Fantasma (BR-319). Transformando uma paisagem em grid, planejadores desenharam suas linhas sobre o espaço vazio dos mapas. Um vazio incompatível a um território cheio de matéria, cuja impenetrabilidade ganhou nesses mapas a carranca de um abismo oco ou de um vórtice redemoinho que tudo sugava[8], em que se lia Amazônia.






A cartografia e as imagens aéreas eram índices imprescindíveis para a apreciação de muitas das obras da land art. Lucy Lippard afirma que, quando a land art era algo novo, oferecia uma expansão de consciência que era tanto estética quanto experiencial, mas que, ao olhar para trás hoje, como em um retrovisor, traz uma visão diferente sobre os macropronunciamentos[9] daquele tipo de trabalho.












"O espectador, assim como o artista, fica tão admirado, tão sensibilizado, tão atento às estações e aos materiais, ao espaço e à vida selvagem, que a obra realmente coexiste com o lugar que cria [...] [...] Quarenta anos depois, mudanças climáticas, escassez de recursos, ameaças de estiagem e administrações federais dedicadas a destruir o meio ambiente para obter ganhos corporativos mudaram as regras do jogo"(LIPPARD, P. 87-88).




“Na verdade, cheguei à relutante conclusão de que muita land art é uma arte pseudo rural feita a partir de uma sede metropolitana, um tipo de colonização em si.”[6]











[7]No original : « Instead of using a paintbrush to make his art, Robert Morris would like to use a bulldozer. » no texto « Towards the Development of an Air Terminal Site, 1967 ». FLAM, Jack (edit.)Robert Smithson: The Collected Writings, University of California Press, Ltd., London, England, 1996 (52-60).










[8] Norte a água dos ralos e das privadas escorre em um sentido e no Sul, no sentido oposto.










[9] O que Lippard chama de um macropronunciamento dizia respeito às ambições destes artistas, cujos trabalhos mais emblemáticos eram Spiral Jetty, de Robert Smithson, o City Complex e Double Negative de Michael Heizer, Sun Tunnels de Nancy Holt, Star Axis de Charles Ross, Roden Crater de James Turrell e as remoções de terra de Robert Morris. Lippard alerta que todos eram brancos, homens à exceção de Nancy Holt e lembra que era muito difícil para artistas mulheres conseguirem o tipo de financiamento necessário para empreendimentos do tipo.





Redução




Schwarzwald, 2010. Michael Sailstorfer. O fragmento pintado de preto da floresta é registrado 24h para acompanhar a modificação do recorte em um monitor dentro de uma galeria.

Waldputz, 2000. Michael Sailstorfer

Um organismo digerindo o que o precedia, transformando em construto o ininteligível à frente, uma enzima, quebrando molécula a molécula uma carcaça enorme, sem pressa, deixando resíduos e subprodutos que podemos classificar e que nos servem de nome. As emendas entre as partes começam a se soltar, uma crosta adiciona sobre o que retira de baixo. A corrosão é uma espécie de generalização: desfaz o que há de específico e transforma em um padrão replicado, um sistema de fragmentação e separação. A diminuir e multiplicar simultaneamente, uma operação negativa e cumulativa, o desmatamento subtrai e encarna a profecia de Antônio Dias, um país negativo.





Memory

Memory

Memory

Memor









*Monumento à memória – trecho retirado de
caderno de anotações de Antonio Dias, exibido na
exposição Antonio Dias/ Arquivo/O lugar do trabalho,
com curadoria de Gustavo Motta no Instituto
de Arte Contemporânea, São Paulo, 2021.









Antonio Dias. The invented country, 1976.
Foto: Udo Grabow




O arco do desmatamento é uma máquina de generalização e descontinuidade, que considera toda diferença inerente a uma floresta inexpressiva, indistinguível a ponto de removê-la completamente e torná-la um campo aberto, idêntico ao anterior ao seu avanço: a dívida.

Esta redução prescinde das características daquele lugar na sua totalidade porque quer transformá-lo em outro. Em nome da fragmentação, um corpo vai sendo retalhado aos poucos, para ser melhor digerido e transformado em calor, forma de energia degradada cuja grandeza absoluta é a entropia. “Você tem um sistema fechado que eventualmente se deteriora e começa a se desfazer e não tem nenhuma forma de juntar todas as peças de novo.”[11]

A entropia é uma digestão dentro da outra. Um espelhamento, um abismo dentro do outro, um estômago de sete camadas comendo o que está dentro. Uma vez na Amazônia, ouvi de um homem que plantava banana que o solo da floresta é um estômago aberto: tudo que cai nele já começa a ser devorado. Serrapilheira é o nome desse aparelho digestivo. Ao fincar seu pé em uma floresta ele já começa a ser comido, os microrganismos comem algumas coisas maiores, que comem algumas coisas menores, que dividem coisas maiores em menores e aglutinam coisas menores em coisas maiores e, resumindo, se algo ficar parado por tempo suficiente no chão da floresta, já é dado como morto, pronto para ser reintegrado.

Este mesmo estômago está sendo comido, por um arco, um segmento de círculo, de uma reverberação de uma onda, que vai comer a anterior. Este estômago microscópico é também um estômago de mil estômagos, conectados entre si no subsolo em uma trama digestora e comunicadora.








Esta trama está sendo comida por uma trama maior. Vai sendo retalhada em pedaços digeríveis. Esta trama maior que come o estômago de mil estômagos menores que come o pé descalço de quem fica parado por tempo suficiente pensando nesse tipo de coisas está sendo comida por ela mesma, mas em uma volta retardatária.

O que há por trás da concavidade do arco é plano aberto, não é mais arco. E o arco, ao se movimentar indefinidamente, caminha para sua própria extinção, erodindo e reduzindo a si próprio. Desintegrado, íntegro, finalmente completo.









[11] SKY, Allison. Entropy Made Visible. 1973 In: FLAM, Jack (ed.). Robert Smithson: the collected writings, Berkeley: University of California Press, 1996. P. 301












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O INIMIGO DA LINHA É O NÓ