Outros olhos sobre o poema visual do Nordeste brasileiro no começo do século XX: o caso de Chyrino de Magalhães


Alexandre Alves

No começo do século XX, existiram no Brasil exemplos esquecidos daquilo que veio logo a se chamar como “poema visual”, mas isso não veio das grandes cidades que fizeram a poesia moderna surgir como uma bomba. No Nordeste do Brasil, dois poetas tentaram seus próprios caminhos e escreveram o que pode estar entre as primeiras tentativas de um tipo de poema que veio a se tornar uma marca registrada na Poesia Concreta, por exemplo. Se Chyrino de Magalhães, nascido no estado da Paraíba, e Jorge Fernandes – nascido na esquina dos trópicos brasileiros, no Rio Grande do Norte – tivessem tido alguma atenção de verdade durante a década de 1920, talvez o futuro experimentalismo brasileiro dos anos de 1950 na poesia tivesse uma outra direção.

 


INTRODUÇÃO

(ou como existem poemas visuais escondidos no Brasil há um século)




                   You shall not look through my eyes either, nor take things from me,

                   You shall listen to all sides and filter them from your self



                    Walt Whitman, “Song of Myself”



Desde a invenção da primeira prensa móvel inventada por Johannes Gutenberg no século XV, o poema e suas palavras escaparam de sua tradição oral milenar, passando a um caminho que não teria mais volta: sua presença escrita para sempre em letras tipográficas nas páginas brancas de um livro. Cada poeta e leitor dali em diante poderia ver o poema não apenas em pergaminhos ou em um códice.

Alguns séculos à frente, o termo “poema visual” veio a espalhar um significado mais potente quando autores franceses como Apollinaire (1880-1918) e Mallarmé (1842-1898) colocaram suas ideias sobre visualidade como centro do poema nos anos iniciais do Modernismo europeu. No fim do século XIX, os protótipos do poema moderno apareciam como uma inovação indo em direção ao verso livre e às variedades temáticas. E a visualidade da página indo em direção a outro mundo de possibilidades.

Na Europa entre o fim do século XIX e o começo do seguinte, autores como Bradbury apontam uma novíssima situação nas cidades “que, por diversas questões históricas, haviam adquirido uma grande fama e intensa atividade como centros de intercâmbio cultural e intelectual” (BRADBURY, 1997, p.76). Quanto ao Brasil, se a cidade de São Paulo foi o epicentro do terremoto modernista e entregou para a poesia brasileira nomes como Mário de Andrade (1893-1945) e Oswald de Andrade (1890-1954), existem ainda estórias obscuras antes e depois da Semana de Arte Moderna de 1922. E estórias bem distantes de São Paulo.

Sem dúvida, a Semana de Arte Moderna marcou o começo oficial do Modernismo brasileiro, todavia isso teve seu preço: “As novas formas artísticas pegaram de surpresa a provinciana população paulista, que se encontrava despreparada para o que fora visto e ouvido, [...] uma nova revolução artística começara” (WILLIAMS, 1996, p. 36). Dentro de todo esse tumulto quanto às novíssimas ideias na poesia (incluindo os poemas visuais entre elas), o Modernismo iniciou sua aventura em uma das maiores cidades dos trópicos. No entanto, existe algo a mais antes e depois desse evento de 1922, incluindo poemas visuais vistos apenas por alguns poucos no Nordeste do Brasil. Estes são os casos de Chyrino de Magalhães (1876-1923) e Jorge Fernandes (1887-1953).



CHYRINO DE MAGALHÃES: POEMAS VISUAIS NUNCA PUBLICADOS NA DÉCADA DE 1920



A milhas e milhas distantes de São Paulo, existiram textos que podem figurar entre os primeiros sinais daquilo que se tornaria uma visível marca registrada na Poesia Concreta, por exemplo, na década de 1950. Nos anos de 1920, era desafiador que as ideias modernas na poesia alcançassem lugares distantes em um país imenso como o Brasil. Entre os autores ainda presos fortemente a estéticas como o Romantismo ou Simbolismo, existiram algumas poucas exceções, escritores esquecidos na longa lista da poesia brasileira, lidando com um injusto esquecimento de nomes apenas descobertos décadas após terem publicado, devido à ausência de reedições, por exemplo.

Mesmo antes das novidades do Modernismo se espalharem pousando em São Paulo, no Nordeste do Brasil existiu um poeta que publicou apenas um livro em sua curta vida. Nascido em 1876 na pequenina Patos, no estado da Paraíba, Chyrino de Magalhães lançou um livro intitulado “Epiphanias” em 1905. Essa publicação foi lançada com uma capa em veludo escuro, com o título usando uma fonte gótica e o texto foi impresso nas cores violeta e azul, de acordo com Gomes (2016). Nada menos caro e esperado vindo de um poeta publicando um livro em uma pequena cidade dos trópicos.

Trabalhando como advogado em sua cidade – ele se graduou na cidade de Recife, em Pernambuco –, Magalhães até lançou uma revista chamada “Phalanges” em 1899, uma publicação de número único misturando a seu gosto Simbolismo e Parnasianismo. Em uma pequena cidade como Patos, o destino da revista foi seu completo esquecimento (GOMES, 2016). Quanto ao único livro de Magalhães, os sonetos dentro de “Epiphanias” aparecem sob um vocabulário místico, como assim é mostrado nos versos de “Prelúdio” (MAGALHÃES apud GOMES, 2016, p. 240):


Músicas outonais de estrelas, luares...

Os ares atravessam, brancas mágoas,

Luzes frouxas, suspiros estrelares...

Vozes sumidas, vagas, vozes d’água...


Visto como exemplo de lirismo envolvendo sinestesia, temas metafísicos e a vaguezas das palavras vindo de um vocabulário culto, o poema não traz novidade alguma debaixo do sol dos trópicos e temas já conhecidos no Simbolismo aparecem em outros textos (música, sensações, atmosfera onírica e outros do tipo). Uma das pistas sutis que levam à forma com que Chyrino escreveu esse tipo de lirismo está em sua correspondência com um amigo dele chamado Heráclito da Nóbrega, um homem culto e rico, leitor da poesia escrita por Charles Baudelaire e Paul Verlaine, nomes insuspeitos da mais aprazível poesia francesa (GOMES, 2016).

Os versos de “Epiphanias” também incluíam poemas em prosa ao final do livro, abandonando as tradicionais rimas. Provavelmente, tais versos não obtiveram análises críticas logo após sua publicação em 1905 porque o nome do autor não aparece até os dias de hoje em trabalhos como “Arrecifes e lajedos” (2001), de Hildeberto Barbosa Filho, uma das mais enciclopédicas análises sobre a poesia produzida no estado da Paraíba. A poesia de Chyrino de Magalhães fez dele uma figura fantasmagórica, escondida nas nuvens escuras do esquecimento literário, como muitos outros escritores do começo do século XX, um lugar e tempo de vasta produção em diferentes cidades do país.

Infelizmente, não existe qualquer outra publicação de Chyrino de Magalhães, mas na correspondência com seu amigo Heráclito da Nóbrega veio à tona a mais interessante estória envolvendo o autor. Mesmo acometido por uma doença mental, a inquieta figura de Magalhães começou a enviar fragmentos de uma obra em andamento intitulada “Voo Véu”, diretamente influenciada por Mallarmé e seu famoso “Um lance de dados”, um dos mais notórios poemas visuais, primeiramente publicado em 1897 na revista “Cosmopolis”, com sede em Londres. Em outra carta enviada a Nóbrega em 1915, o poeta afirmava ter recebido a novidade da Europa – como o livro “La bonne chanson”, de Paul Verlaine – e recortes e páginas dos jornais literários franceses, o que incluía poemas de Mallarmé entre eles. Esse material tinha sido enviado por um jovem amigo do poeta chamado Lucena de Souza, que morou em Recife e havia retornado de Paris naquele mesmo ano de 1915, como confirmou Gomes (2016).

Dali em diante, na correspondência para o amigo Nóbrega entre 1915 e 1919 apareceram muitos fragmentos de poemas, textos que seriam partes de “Voo Véu”, um trabalho que nunca veria a luz do dia. A vida do poeta passava por vários apuros, como a perda de seu cargo público em 1917 devido a questões políticas e o divórcio (GOMES, 2016), fatos que fazem da não-publicação de “Voo Véu” mais parecida com um simbólico sonho, ironicamente. Em 1919, o poeta Magalhães foi levado para um hospital privado em Recife, às custas de seu amigo Heráclito da Nóbrega.

E assim foi o fim melancólico de Chyrino de Magalhães, que continuou a enviar ainda cartas ao seu amigo, de todo modo. Dentro delas havia poemas que sobreviveram ao tempo e que exploraram a visualidade como nunca vista antes na poesia brasileira. Sem título, um deles expõe uma evidência anti verbal, dançando no espaço em branco da página (MAGALHÃES apud GOMES, 2016, p. 251):








Ficou clara a influência dos poemas visuais de Mallarmé, gerando um quebra-cabeças entre as palavras que seguem em direção a uma combinação de estranhas relações fragmentárias – barulho, fatos naturais, o inseto versus o humano, sensações versus ações –, fazendo emergir um dos elementos peculiares na poesia moderna (MELO NETO, 1997). Em outro poema, a mistura do vocabulário vindo do Simbolismo e a visualidade do verso parece ainda mais radical, como pode ser visto em “Est(r)ela” (MAGALHÃES apud GOMES, 2016, p. 253):





Sobre seu título, o poema joga um pensamento duplo ao leitor: a evocação das luzes siderais das estrelas e nome feminino da musa (Estela). Ao longo dos versos, palavras e letras vão compondo um contexto visual. Percorrendo as imagens fragmentárias entre a noite e o dia, as estrofes exploram uma espécie de poema cuja estrutura principal é ter uma não-estrutura, pois da esquerda para a direita a atmosfera entre a escuridão e a luz é um jogo que o poeta lança ao leitor através da percepção visual do texto. Se os termos “est(r)ela” e “noite” estão em letras maiúsculas para chamar a atenção sobre isso, a palavra “sol” no sétimo verso também está trabalhando na mesma forma, pois estava funcionando como um contraste para todos os outros elementos naturais de escuridão no poema.

A estratégia parecia a de desvendar imagens fragmentárias, vindas do mar (onda/wave) ou dos opostos claro e escuro, com as palavras “sombra” e “penumbra” brincando como a ação de um quebra-cabeças. Então, formando uma segunda estrofe, outro símbolo da natureza aparece em uma imagem microscópica sob uma sequência de aliteração – “não é a rósea rosa” – se comparado com a estrela macroscópica no centro do poema. Em letras maiúsculas, a palavra solitária “sol” surge para aumentar metaforicamente a sensação de cor da “amarela corola aquecida”, um contraste total quanto à noite nos primeiros versos.

A estrofe final pousa na visualidade, criando uma perspectiva diferente e possível, mais uma vez focando a noite e seus elementos, mas no mesmo contraste entre luz e escuridão. Ela funciona como uma fotografia macroscópica invertida, com o universo negro trazendo estrelas brilhando à noite, mas ao mesmo tempo distantes entre si – uma ideia sideral de isolamento e solidão – conforme a disposição das letras pretas sobre o branco página. Estrelas (e Stella) brilham ao se tocarem à distância.

E temos que lembrar que o poema foi escrito por volta de 1920 e o poeta morreu em 1923. Hoje, os versos de Chyrino de Magalhães poderiam ser facilmente impressos em uma página escura com letras brancas, criando um efeito ainda mais preciso, embora não existam dúvidas que os poema visuais do paraibano estejam no começo das novas aventuras no gênero lírico no Brasil, com o Modernismo ainda por nascer em sua versão nacional. Só não dá para negar o pioneirismo desse poeta esquecido até os dias de hoje, como se fosse uma epifania para o leitor.

 




Referências


BARBOSA FILHO, Hildeberto. Arrecifes e lajedos. João Pessoa: Editora UFPB, 2001.

BRADBURY, Malcolm. The cities of Modernism. In: BRADBURY, Malcolm; MCFARLANE, James (orgs.). Modernism 1890-1930. Middlesex: Penguin Books, 1986.

GOMES, Álvaro C. O Simbolismo, uma revolução poética. São Paulo: EDUSP, 2016.

MELO NETO, João Cabral de. Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

WILLIAMS, Frederick G. Poets of Brazil. New York: Luso-Brazilian Books, 1996.