Criação e cuidado na mistura entre corpos vibráteis/materiais
jialu pombo
Dedico o texto à minha tia Fátima Pombo.
Esse texto é uma pequena expressão dos afetos que marcam o acontecimento de meu encontro com Lygia Clark. Mas não se enganem, como nasci na década de 1980, tal encontro não foi de carne e osso, ou presencial, como diríamos na atualidade massivamente online. Tampouco foi/é meramente virtual – não existe apenas em potência, e tem um forte efeito no real. Da década de 1990, quando provavelmente aconteceu o primeiro episódio desse encontro, até o momento em que escrevo essas palavras, tenho tido tempo para elaborar e expor algo do que se passa aqui, algo da mistura que acontece entre nossos “corpos vibráteis.”1 E a essa mistura integram-se, também, outroas2 agentes que cruzam nossos caminhos. Nesse texto relaciono criação e cuidado (trazendo minhas expressões sobre o que Suely Rolnik chamou de arte e clínica) com algumas coisas que Lygia realizou/propôs, e faço isso a partir de minha trajetória como alguém que cria e cuida (alguém que é criado e cuidado).
Quantos seres sou eu para buscar sempre do outro ser que me habita as realidades das contradições? Quantas alegrias e dores meu corpo se abrindo como uma gigantesca couve-flor ofereceu ao outro ser que está secreto dentro de meu eu? Dentro de minha barriga mora um pássaro, dentro do meu peito, um leão. Este passeia pra lá e pra cá incessantemente. A ave grasna, esperneia e é sacrificada. O ovo continua a envolvê-la, como mortalha, mas já é o começo do outro pássaro que nasce imediatamente após a morte. Nem chega a haver intervalo. É o festim da vida e da morte entrelaçadas. (CLARK, 1967. In LINS, 1996. In ROLNIK, 2015. p. 104)
1 Expressão de Suely Rolnik, com a qual a autora trabalha em diversos textos, em alguns escrevendo com hífen – “corpo-vibrátil”, como aparece aqui mais adiante. Meu encontro com essa expressão se deu durante a leitura do livro Cartografia Sentimental – transformações contemporâneas do desejo, nele vemos que o corpo vibrátil é “aquele que alcança o invisível. Corpo sensível aos efeitos dos encontros dos corpos e suas reações: atração e repulsa, afetos, simulação em matérias de expressão” (1989. p. 26). Crio uma relação singular com essa expressão, articulando-a com o que chamo de corpo matéria, no sentido das camadas materiais da existência, da fisicalidade da carne. O entrelaçamento e integralidade de vibrátil e material está expresso já no título com a grafia corpos vibráteis/materiais, sendo explorada ao longo desse texto.
2 Articulação que uso para não me submeter à divisão binária de gênero nas palavras, uma formulação que acredito ser possível de usar na linguagem falada e não apenas na escrita. Assim, a proposta de leitura é que nas palavras com a sequência das letras que, no português, indicariam a conotação masculina ou feminina (exemplo: o ou a) a sonoridade seja contínua e não interrompida, ou seja, ao se deparar com a palavra outroa, lê-se outroa e não outro / outra. O uso misturado das letras propõe sua descaracterização de leituras generificadas.
2 Articulação que uso para não me submeter à divisão binária de gênero nas palavras, uma formulação que acredito ser possível de usar na linguagem falada e não apenas na escrita. Assim, a proposta de leitura é que nas palavras com a sequência das letras que, no português, indicariam a conotação masculina ou feminina (exemplo: o ou a) a sonoridade seja contínua e não interrompida, ou seja, ao se deparar com a palavra outroa, lê-se outroa e não outro / outra. O uso misturado das letras propõe sua descaracterização de leituras generificadas.
O entrelaçamento entre vida e morte do qual Lygia fala é o que tenho chamado pela expressão vulnerabilidade-força: há uma força presente em um embrião que carrega informação potencial de vida, e para que tal vida venha a existir, aquilo que a carrega precisa abrir mão de sua forma, atingir o ápice de sua vulnerabilidade, e se misturar para germinar outra coisa. Nessa passagem que se encontra o ato de criação, ela segue acontecendo de novo e de novo, sempre diferente. Essa vida=morte=vida∞ se dá tanto em cada vivente como de um ao outro:
(…) a vida aparece como uma corrente que vai de um germe para um germe pelo intermediário de um organismo desenvolvido. Tudo se passa como se o próprio organismo não fosse mais que uma excrescência, um broto que o germe antigo faz despontar, ao trabalhar para se prolongar em um germe novo. (BERGSON, 2019. p. 29)
Os seres vivos estão mudando constantemente, e a mudança reside na passagem de um germe para outro, do que advém a criação. Sendo constituídos de incontáveis outroas em si mesmoa (couve-flor, pássaro, leão…), em maior ou menor proporção, os ovos estão sempre lá. Nunca deixamos de ser semente e “na semente (e se poderia dizer no código genético) o saber coincide com a essência, a vida, a potência e a própria ação” (COCCIA, 2018. p. 103).
Criação é o curso da vida em ação (aqui a palavra vida tenta dizer dessa corrente que passa entre os seres, uma consciência pulsante que circula em todoas e se diferencia pela multiplicidade de formas singulares). Uma ação desimpedida (sem bloqueios, sem travas, sem impedimentos) tanto dos corpos vibráteis como dos corpos materiais, e, principalmente, da integração deles – células, estômago, clorofila, ossos, floemas, nervos, parênquimas, folhas, pele, casca, unhas, espinhos, penas, escamas, etc.; modos de ser, pensamentos, emoções, afetos, gestos, linguagens, etc. Ou seja, por mais fugidios e cheios de mistérios, por mais desconhecidos que sejam, os corpos vibráteis/materiais com suas vulnerabilidades-forças, necessitam seguir um curso de ação desimpedida para acontecerem como criação. E, existe um saber em cada ser singular que indica os caminhos que dão passagem à criação, um saber na medida do que é necessário, mas que, sem o devido cuidado, se perde. É assim que venho encontrando com a criação, e essa experiência me leva a confrontar a Arte (essa com ‘A’ maiúsculo mesmo), e como ela institucionalizou a criação.
A Arte se constituiu enquanto disciplina do conhecimento ao estruturar o ato criador em categorias e classificações que, em princípio, são apenas diferentes linguagens – formas de expressão criadas e adotadas ao longo das existências dos seres vivos em contextos variados. Podemos dizer que são linguagens inatas aos movimentos da vida, das ações de contato e troca, e “o inato é um agir, e um agir sem finalidade, mesmo que se produzam coincidências entre os ‘traços’ do agir e alguma utilidade, que pode até ser indispensável para a sobrevivência” (DELIGNY, 2015. p. 83). Esse ato criador que se expressa como linguagem mostra-se como “articulação imanente” (ROLNIK, 2011. p. 30) nos/dos coletivos e sociedades. Mas a articulação imanente é bloqueada quando o curso da vida em ação desimpedida, ou seja, a criação, é estancada e enrijecida, quando é milimetricamente padronizada, tornando-se modelo a ser reproduzido – é precisamente nesse nó que localizo a invenção da Arte enquanto instituição. Esse nó separa a criação dos atos cotidianos da vida, e a Arte sustenta exatamente isso ao delimitar quem, quando e onde a criação pode acontecer. Além disso, na Arte é preciso que a criação resulte em um produto, e que os produtos se adéquem a formas de circulação (o que é bem diferente da partilha da criação que acontece em contextos onde a articulação imanente não está bloqueada). Dessa forma, observo que a institucionalização do ato criador pode gerar a perda de sua vitalidade expressiva porque substitui a ação desimpedida (imprescindível para que haja criação) pela projeção do querer (DELIGNY, 2015) – querer fazer o produto de acordo com os padrões e meios de circulação. O querer não é desimpedido, está vinculado a pressupostos e expectativas e a partir disso apaga-se o agir inato. Afinal, não há “necessidade de querer para agir. Muito pelo contrário: basta querer para que desapareça a constelação que suscita o agir, um pouco da mesma maneira como a luz do sol faz desaparecerem as estrelas” (Idem. p. 51). Esse ciclo da Arte, gera afastamento do saber que cada ser vivo tem sobre sua capacidade inata de criar. Enquanto isso as criaturas que tecem teias nos ensinam “que não se trata, para a aranha, de querer, por meio da tessitura de sua teia, ter moscas; é tramar que importa” (Ibidem. p. 65). E Lygia nos diz:
A Arte se constituiu enquanto disciplina do conhecimento ao estruturar o ato criador em categorias e classificações que, em princípio, são apenas diferentes linguagens – formas de expressão criadas e adotadas ao longo das existências dos seres vivos em contextos variados. Podemos dizer que são linguagens inatas aos movimentos da vida, das ações de contato e troca, e “o inato é um agir, e um agir sem finalidade, mesmo que se produzam coincidências entre os ‘traços’ do agir e alguma utilidade, que pode até ser indispensável para a sobrevivência” (DELIGNY, 2015. p. 83). Esse ato criador que se expressa como linguagem mostra-se como “articulação imanente” (ROLNIK, 2011. p. 30) nos/dos coletivos e sociedades. Mas a articulação imanente é bloqueada quando o curso da vida em ação desimpedida, ou seja, a criação, é estancada e enrijecida, quando é milimetricamente padronizada, tornando-se modelo a ser reproduzido – é precisamente nesse nó que localizo a invenção da Arte enquanto instituição. Esse nó separa a criação dos atos cotidianos da vida, e a Arte sustenta exatamente isso ao delimitar quem, quando e onde a criação pode acontecer. Além disso, na Arte é preciso que a criação resulte em um produto, e que os produtos se adéquem a formas de circulação (o que é bem diferente da partilha da criação que acontece em contextos onde a articulação imanente não está bloqueada). Dessa forma, observo que a institucionalização do ato criador pode gerar a perda de sua vitalidade expressiva porque substitui a ação desimpedida (imprescindível para que haja criação) pela projeção do querer (DELIGNY, 2015) – querer fazer o produto de acordo com os padrões e meios de circulação. O querer não é desimpedido, está vinculado a pressupostos e expectativas e a partir disso apaga-se o agir inato. Afinal, não há “necessidade de querer para agir. Muito pelo contrário: basta querer para que desapareça a constelação que suscita o agir, um pouco da mesma maneira como a luz do sol faz desaparecerem as estrelas” (Idem. p. 51). Esse ciclo da Arte, gera afastamento do saber que cada ser vivo tem sobre sua capacidade inata de criar. Enquanto isso as criaturas que tecem teias nos ensinam “que não se trata, para a aranha, de querer, por meio da tessitura de sua teia, ter moscas; é tramar que importa” (Ibidem. p. 65). E Lygia nos diz:
A impressão que eu tenho é que a gente vai fazer um grande retorno e voltar àquela época em que a arte era uma coisa de vida tão anônima que não havia o artista como nome e como mito. As pessoas criariam naturalmente, quase como um ato de comer, de fazer amor, de viver, mas sem a preocupação de ser o artista. (…) A meu ver todo mundo tem potencialmente a capacidade de criar. Agora, se a pessoa é condicionada num meio que não favorece, ela acaba não criando. E o bloqueio, a sociedade de consumo, o condicionamento atual, faz com que muita gente pegue essa sensibilidade e guarde pra si mesma. (O MUNDO…, 1973)
Como seria criar naturalmente, quase como um ato de comer? Enquanto eu estudava Arte, esse tipo de pergunta não saía de minha órbita porque, minha percepção da criação ficou grudada na Arte, mas, também, porque não houve meio favorável para perceber que a criação está no ato de viver. Sem o meio favorável para tal experiência da vida, mas tendo meios favoráveis para adentrar na Arte (pelo menos até certo ponto), tentei fazer dessa ocupação um refúgio para ter espaço/tempo para criar. Talvez Lygia tenha passado por algo semelhante, difícil saber…
Rede de elástico, 1973.
Fotografias de Fátima Pombo
Não só “todo mundo tem potencialmente a capacidade de criar”, todo mundo está criando, tendo consciência ativa sobre o processo ou não. Mas os meios que não favorecem a criação enquanto ação desimpedida da vida e os bloqueios que advém daí podem gerar sofrimento. São bloqueios que travam a vida e, consequentemente, sua expressão, suas linguagens. Acontece que ao nos lançarmos na Arte podemos cair numa banalização do sofrimento, uma vez que ele é canalizado nas “obras”, através do refúgio mencionado acima. Isso impede a abertura de outros caminhos para um exercício de cuidado a tais sofrimentos. Cuidados esses que a Arte não é capaz de articular, nos quais a dor precisa ser respeitada, precisa ser escutada, e não idealizada como fonte de criação – “temos de nos livrar das pegadas da cilada romântica que alia a criação à dor. Qualquer situação em que a vida se vê constrangida pelas formas de realidade e/ou o modo de descrevê-las produz estranhamento” (ROLNIK, 2011. p. 23-24). Os estranhamentos que experimentamos fazem parte dos movimentos de mudança da vida, são manifestações da vulnerabilidade-força – o festim da vida e da morte entrelaçadas. A dor e o sofrimento surgem quando esse processo fica obstruído, mas existem caminhos de cuidado.
Quando Lygia diz que tem a impressão de que faremos “um grande retorno”, voltando a uma época em que “a arte era uma coisa de vida”, acredito que ela não esteja falando de uma nostalgia em relação a modos de agir específicos de outros tempos e seres, mas de uma reconexão com o exercício de uma ética vital que diz respeito a “zelar pela preservação da vida, que depende da viabilidade da experiência estética para escutar seus movimentos e adotá-los como baliza na orientação da existência;” (Idem. p. 34).
Quando Lygia diz que tem a impressão de que faremos “um grande retorno”, voltando a uma época em que “a arte era uma coisa de vida”, acredito que ela não esteja falando de uma nostalgia em relação a modos de agir específicos de outros tempos e seres, mas de uma reconexão com o exercício de uma ética vital que diz respeito a “zelar pela preservação da vida, que depende da viabilidade da experiência estética para escutar seus movimentos e adotá-los como baliza na orientação da existência;” (Idem. p. 34).
(…) se expressar melhor, amar melhor, comer melhor, isso no fundo me interessa muito mais como resultado do que a própria coisa em si que eu proponho a vocês. Isso é um exercício para a vida. (O MUNDO…, 1973)
A experiência Estruturação do Self3, foi um acontecimento que inaugurou um ritual que precisou sair da Arte para ativar uma prática de cuidado que, através da integração da matéria corporal com diversos objetos (saquinhos cheios de ar, água, areia ou isopor; tubos de borracha, panos, meias, conchas, mel, etc.), abre passagem para o equilíbrio dinâmico que mantém cada vivente ativamente implicado na criação, no exercício da vida, e assim, conectado na passagem de um germe a outro. E o que há de tão potente nesses objetos? Lygia diz no documentário Memória do corpo (1984): “isso eu chamo de objeto relacional, porque na realidade ele (...) só tem uma relação com o sujeito, de per se ele não tem qualidade nenhuma”. Talvez poderíamos dizer que de per se nada tem qualidade, uma vez que a condição de ser algo ou alguém só acontece em relação a (o que incluiu as obras de Arte). Então, o que reconheço como potente não só nos objetos, mas nas relações estabelecidas a partir do contato, é a presença daquilo que chamo de agências formadoras da vida – água, terra, fogo e ar. Tudo que há de vivo passou a existir nesse mundo a partir da interação e mistura dessas agências, e Lygia as convoca, direta ou indiretamente, nos objetos que cria para as sessões – a exemplo da pedrinha que possibilitava um aterramento durante a viagem imaterial, ou de seu sutil sopro direcionado ao corpo de quem se aventurava nesse ritual.
3 Para melhor conhecimento sobre o que se trata tanto o Estruturação do Self como os Objetos Relacionais, indico os filmes mencionados na bibliografia.
Os Objetos Relacionais funcionavam como catalisadores do acontecimento que convocavam a transvaloração da experiência do vivo, ou seja, a valorização da vida através de uma reconfiguração dos sentidos. Gostaria de chamar atenção, então, não só à ênfase que a experiência traz aos sentidos, mas ao fato de isso estar relacionado às agências formadoras de vida. Acredito que esse contato entre o que existe primordialmente em comum entre os corpos seja o potencial para um processo de cuidado, de maneira que “o festim do entrelaçamento da vida com a morte extrapole a fronteira da arte e se espalhe pela existência afora” (ROLNIK, 2015. p. 106). Lygia e os Objetos Relacionais conduziam a experiência, mas cabia a cada participante propagar não só os efeitos gerados, mas a própria possibilidade de recompor seus contornos e reestabelecer seu equilíbrio a partir dos encontros pela vida afora, ampliando as “chances de realizar a seu modo este encontro, aproximar-se de seu corpo-vibrátil e expor-se às suas exigências de criação” (Ibidem. p. 105).
a gente deitava e ela punha uns pesos, com texturas diferentes, coisas em pontos do corpo, deixava durante um tempo. E você não sabia se era um saco de areia, depois água, depois com pedrinhas miúdas. Ela massageava um pouco, mas a maioria ela simplesmente deixava, encostava. Algumas coisas eram bem indiretas, como por exemplo, ela pegava um canudo fininho e soprava de longe.4
As proposições de Lygia “liberam uma porção de matérias-primas que temos dentro da gente”5 – essa matéria-prima nada mais é do que a porção das agências formadoras de vida que compõe todos os corpos, inclusive os Objetos Relacionais. Permanecer em silêncio e solidão com essas materialidades em contato com o corpo gerava uma fusão: “tudo some e você se funde com o Objeto. (…) é uma troca com o Objeto, indescritível”6, e isso se mostra como um processo de criação de uma linguagem que surge a partir dessa fusão. Lula Wanderley relata que passou por um desbloqueio de sua atividade vital, e “esse sentimento de vida que desbloqueia é difícil colocar em palavras, isso você vai colocar na vida”7. É um desbloqueio da ação desimpedida da vida, da potência criadora e da consciência ativa aos seus processos, e, consequentemente, da expressão de linguagens singulares em/de cada ser, que podem vir a ser parte da articulação imanente nas/das sociedades.
4Caetano Veloso em entrevista a Suely Rolnik, publicada em DVD no Arquivo para uma obra acontecimento, 2011.
5 Lia Rodrigues em entrevista a Suely Rolnik, publicada em DVD no Arquivo para uma obra acontecimento, 2011.
6 Lula Wanderley em entrevista a Suely Rolnik, publicada em DVD no Arquivo para uma obra acontecimento, 2011.
7 Idem.
5 Lia Rodrigues em entrevista a Suely Rolnik, publicada em DVD no Arquivo para uma obra acontecimento, 2011.
6 Lula Wanderley em entrevista a Suely Rolnik, publicada em DVD no Arquivo para uma obra acontecimento, 2011.
7 Idem.
Ouvindo os relatos de algumas pessoas que participaram, percebo que a experiência mexia com a sensação de contorno vibrátil/material. A fusão com os Objetos Relacionais poderia amolecer contornos existenciais demasiadamente rígidos, fixados em padrões preestabelecidos de subjetividade. Mas, o contato com os objetos também poderia desencadear a formação de contorno, fortalecer a estrutura subjetiva de pessoas em estados existenciais por demais diluídos, que, sem consistência perdem potência de ação. Como observa Lula Wanderley (2011. p. 23): “O corpo em Lygia Clark passa a ser uma experiência na qual uma totalidade dinâmica – corpo/sujeito+objeto/mundo – atravessa o vazio de uma dissolução cósmica e, paradoxalmente, reafirma a diferença, a individuação”.
Canibalismo, 1973.
Fotografia de Fátima Pombo
Fotografia de Fátima Pombo
Uma vez que desbloqueia a atividade vital, o processo provoca a germinação de linguagens. Como destaquei acima, o que veio a ser chamado de Arte nada mais é do que a categorização das linguagens inatas aos movimentos da vida, das expressões que geram contato e troca, e, uma vez que a proposição de Lygia desperta essa potência, extrapola o lugar da Arte, extrapola, também, a linguagem hegemônica que se firma nas interpretações inteligíveis das palavras. São linguagens que acessam uma realidade vibrátil/material que não está presa na palavra – a realidade sensorial. O sensorial é a dimensão de contato com a ecologia da vida, com o cosmos, são mecanismos orgânicos que primordialmente possibilitam a criação de contorno existencial, de um contorno que permanece conectado com as múltiplas dimensões do que há de vivo. Essa realidade sensorial é um dos meios pelos quais sabemos o que somos, sabemos nossos limites, e também são "como compreendemos tudo o que não somos. Visão, audição, olfato, paladar e tato são as cinco maneiras – as únicas cinco maneiras – como o universo pode se comunicar conosco" (GRANDIN, 2020. p. 78), qualquer outra maneira advém daí. Os sentidos sensoriais geram um ritmo entre criação de contorno e fusão com o cosmos. Eles são ativados quando um ser vivo cria corpo para fora da semente, e funcionam em interação, uma interdependência, nas diversas formas que isso pode aparecer (se balanceando quando há algum bloqueio). Mas, uma vez fora da semente, o contexto pode provocar uma despotencialização dessa rede, ao pretender substituí-la por outras linguagens (como as palavras enquanto vetores de categorizações enrijecidas e hierarquizantes) na ação de gerar e manter os contornos necessários para as relações vitais. A partir disso, penso especialmente nas práticas de cuidado dos “territórios existenciais” (GUATTARI, 1990), colocando a atenção na relação entre o sensorial e a palavra: não é que a palavra bloqueie os sentidos sensoriais a ponto de eliminá-los – a palavra pode gerar um tipo específico de saber de si e do mundo que agrega ao sensorial. Mas quando seu aprendizado está colado na pretensão de superar os sentidos sensoriais, fica nítida sua ação cindida e não agregadora, ou integrativa, e isso é crucial quando visamos o cuidado.
Nesse contexto cindido a palavra e o sensorial são dois mecanismos distintos de sensação de si mesmo, que desencadeiam processos de singularização com os quais é possível se reconhecer, conhecer suas potências enquanto seres vivos, e conhecer o mundo – e “não há como separar o ‘si mesmo’ do contexto”. Entretanto essas duas operações devem ser uma e a mesma operação, a palavra sozinha não é capaz de nos manter integrados na corrente vital que passa entre os seres (a vida enquanto consciência pulsante que circula), já os sentidos sensoriais são inatos (dentre as múltiplas manifestações), assim, é necessário que a palavra exista enquanto aliada do sensorial, para que os seres que por ela transitam permaneçam integrados. É por isso que rituais como o proposto por Lygia são importantes práticas de cuidado em meios não favoráveis à criação, como é o capitalismo colonial e racializante com sua fixação por categorias, já que procuram resgatar a sabedoria de si a partir do sensorial no contato com as “matérias-primas”, sem depender das palavras, mas reequilibrando e reintegrando essa operação anteriormente separada em duas. Mas não se trata de desistir da Arte, trata-se de lembrar que a criação não está grudada nela, é ação livre intrínseca ao exercício da vida e seus processos de cuidado. Para a Arte ser criação (passando, então, a ser grafada com ‘a’ minúsculo, tal como outros atos do viver, como comer, fazer amor…) é necessário, então, um compromisso ético com a vida.
Concluo compartilhando que na minha vivência da criação e do cuidado esse processo tem se mostrado imprescindível e meus encontros com Lygia tem sido catalisadores e fomentadores da abertura necessária para desbloquear a atividade vital e me expor às exigências singulares de criação do meu corpo vibrátil/material. Esse é o convite das criações de Lygia, e é o convite desse texto.
Concluo compartilhando que na minha vivência da criação e do cuidado esse processo tem se mostrado imprescindível e meus encontros com Lygia tem sido catalisadores e fomentadores da abertura necessária para desbloquear a atividade vital e me expor às exigências singulares de criação do meu corpo vibrátil/material. Esse é o convite das criações de Lygia, e é o convite desse texto.
Texto escrito a partir das pesquisas e elaborações de minha tese de doutorado orientada por Suely Rolnik, no Núcleo de Estudos da Subjetividade, do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica, da PUC SP. Atualmente com previsão de término para agosto de 2022.
jialu pompo
Doutorando em Psicologia Clínica PUC SP, pesquiso processos clínicos e criação de linguagens como caminhos para descolonizar a vida da estrutura binária. Graduação e
mestrado em Artes Visuais UFRJ. Como alguém neurodivergente e dissidente de gênero, participo e realizo atividades que cruzam essas temáticas e a arte.
jialu pompo
Doutorando em Psicologia Clínica PUC SP, pesquiso processos clínicos e criação de linguagens como caminhos para descolonizar a vida da estrutura binária. Graduação e
mestrado em Artes Visuais UFRJ. Como alguém neurodivergente e dissidente de gênero, participo e realizo atividades que cruzam essas temáticas e a arte.
Referências bibliográficas
BERGSON, Henri. A evolução criadora. Tradução Bento Prado Neto. - 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2019. - (Biblioteca do Pensamento Moderno)
COCCIA, Emanuele. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Tradução Fernando Scheibe – Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2018.
DELIGNY, Fernand. O aracniano e outros textos. Tradução Lara de Malimpensa. São Paulo: n-1 edições, 2015.
DISERENS, Corinne; ROLNIK, Suely. Lygia Clark: da obra ao acontecimento. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo Organização Social, 2006.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução Maria Cristina F. Bittencourt; revisão da tradução Suely Rolnik. 2ª edição. Campinas: Papirus, 1990.
GRANDIN, Temple; PANEK, Richard. O cérebro autista. Tradução Cristina Cavalcanti. 12ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2020.
ROLNIK, Suely. Arquivo para uma obra-acontecimento: projeto de ativação da memória corporal de uma trajetória artística e seu contexto. São Paulo: Selo Sesc, 2011.
GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução Maria Cristina F. Bittencourt; revisão da tradução Suely Rolnik. 2ª edição. Campinas: Papirus, 1990.
GRANDIN, Temple; PANEK, Richard. O cérebro autista. Tradução Cristina Cavalcanti. 12ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2020.
ROLNIK, Suely. Arquivo para uma obra-acontecimento: projeto de ativação da memória corporal de uma trajetória artística e seu contexto. São Paulo: Selo Sesc, 2011.
____________. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.
____________. Lygia Clark e o híbrido arte/clínica. Revista concinnitas, ano 16, v. 01, n 26, julho de 2015. p. 104-112. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/ojs/index.php/concinnitas/article/view/20104. Acesso em set. 2017.
WANDERLEY, Lula. No silêncio que as palavras guardam; organizado por Kaira M. Cabañas. São Paulo, SP: n-1 edições, 2021.
Referências videográficas
ARQUIVO para uma obra-acontecimento: projeto de ativação da memória corporal de uma trajetória artística e seu contexto. Direção e entrevistas: Suely Rolnik. São Paulo: DVD, Selo Sesc, 2011.
O MUNDO de Lygia Clark. Direção: Eduardo Clark. Rio de Janeiro: [s. n.], 1973. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qCohXfwFlz4 . Acesso em: 13 set. 2020.
MEMÓRIA do corpo. Direção: Mário Carneiro. Rio de Janeiro: [s.n.], 1984. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=c3VU6KtfhSI. Acesso em: 30 out. 2021.