De vidro. Por que não recua ou morre?


Laila Terra

Título: Edith Farnsworth no texto “Artifact”, em Memoirs. Chicago: Newberry Library Archives.
Nota inicial

Começo a nota com a “Teoria dos nós”. Podemos definir os nós no nosso cotidiano: cadarços, fios de cabelos, cordas de marinheiro. Uma amarração contínua de um fio ou mais fios a si mesmos, com dobraduras internas. Já na teoria dos nós, no estudo da matemática, os nós têm suas pontas unidas e não podem ser desfeitas. No registro, qualquer nó dado pode ser desenhado de muitas maneiras usando um diagrama de nós. Este artigo foi escrito em julho de 2020 e, em novembro de 2021, a instituição “Casa Farnsworth” mudou seu nome e o da obra arquitetônica para o nome de “Casa Edith Farnsworth”. Segundo o site, uma reparação histórica reconhecendo a importância de Edith na criação da casa no qual ela contratou o arquiteto Mies van der Rohe. No artigo “Memória, esquecimento, silêncio” por Michael Pollak, escrito em 1989, o autor se debruça sobre as memórias subterrâneas de excluídos, de grupos minoritários e marginalizados, memórias que emergem em oposição a uma “memória oficial”. Segundo o autor, as memórias subterrâneas, como parte fundamental de culturas dominadas, sobrevivem silenciosamente, emergindo nas crises e contextos políticos favoráveis e entrando em disputa com a memória “oficial”. Nesta perspectiva, cabe questionar: como a história “oficial” da “casa Edith Farnsworth” era contada até novembro de 2021? Como ela está sendo contada hoje? A casa Farnsworth é um mito construído por “homens” para os “homens” – Assim como Edith comenta em seus diários. Os poemas de Edith Farnsworth contribuem para uma percepção de beleza. A casa de vidro surge nas obras não como cenário ou objeto neutro, ela é o “sujeito” que proporciona experiências e contemplações, que ativa os acontecimentos. Os poemas avaliam os eventos transitórios que a casa proporciona. As memórias subterrâneas de Edith sobreviveram silenciosamente até os dias de hoje, e emergem abrindo uma disputa com a memória “oficial”: do “não-dito” à contestação e reivindicação.
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol 2, n 3, 1989, pag 3-15.


© Edith Farnsworth Papers, The Newberry Library, Chicago.
Neste ensaio nos aventuramos a explorar a hipótese de que a arquitetura, além de ser um domínio de expressão cultural que guarda e conserva mitos, é também campo de produção e reprodução deles.

Ao investigar o entorno do processo que resultou na criação da já consagrada obra arquitetônica "Casa Farnsworth", de Mies van der Rohe, 1951, encontramos pontos de vistas ético-poéticos contrastantes. O primeiro, que tomamos como clássico, por dominar o senso comum é o que divulga o site oficial da obra, que abriga desde o projeto, os relatos que chamaremos "oficiais" sobre seu desenvolvimento e subsequente memorial descritivo das etapas que vão desde a concepção, passando pela construção até a finalização da casa, citado e comentado tanto nas revistas relevantes do setor, quanto em textos críticos especializados em arquitetura moderna e/ou contemporânea.

Contrastando com essa perspectiva, existe um acervo extenso respectivo à vida de Edith Farnsworth, com documentos, diários, cadernos, fotos com anotações, impressões e depoimentos singulares a respeito da "Casa Farnsworth". Esse material, está mantido e preservado na Biblioteca Pública de Chicago. É pouco divulgado. Sua consulta é limitada e restrita aos estadunidenses. Para o restante do mundo, temos acesso apenas a uma parte digitalizada do material e disponibilizada no site da instituição. Essa segunda paisagem, desprezada pelos representantes "oficiais" da obra, é pouco valorizada. Trata-se de uma visão minoritária, que se afirma na singularidade daquilo que escapa aos holofotes discursivos da cultura predominante. O olhar é o de uma mulher, solteira, intelectual, autônoma, categorias imperceptíveis em um mundo dominado por projetos arbitrários, dogmáticos e idealistas. O que está em jogo na oposição entre dois pontos de vista é o movimento que arrasta consigo as verdades das proposições indiscutíveis e quebra suas estruturas dogmáticas. Entrevemos, neste ponto, o paradigma das obras arquitetônicas modernistas.

Daí decorrem algumas questões. Devem as casas/obras artísticas serem habitadas e, por consequência, serem transformadas por aqueles que nela residem? Ou, ao contrário, devem permanecer como maquetes em escala um para um e serem experimentadas apenas como obras poéticas instalativas? Cumpririam seu desígnio de lar/residência sem serem vivenciadas? Ou, de outra forma, seriam as experiências vividas no encontro entre os corpos habitantes e o corpo próprio dessas casas que as tornariam verdadeiras obras poéticas?

O discurso oficial da casa Farnsworth começou a ser criado antes mesmo dela existir. Desde sua primeira aparição, ainda em formato de maquete no ano de 1947, na exposição do MoMA de Nova Iorque, o mundo da arquitetura já a considerava como uma autêntica criação racional. Phillip Johnson, curador da exposição escreve:

A casa Farnsworth com seu vidro contínuo de paredes é uma interpretação ainda mais simples de uma ideia. Aqui a pureza da gaiola é imperturbável. Nem as colunas de aço das quais estão suspensas nem o terraço flutuante independente quebram a tensão superficial.1


1 Disponível em The Edith Farnsworth House. tradução livre feita pela autora do artigo.
Edith Farnsworth, que também estava presente na abertura da exposição, em um breve relato demonstra o orgulho que sentia pelo projeto, graças ao seu papel no cenário cultural da época.

Fiquei feliz quando embarquei no trem de volta para Chicago, refletindo que nosso projeto poderia muito bem vir a se tornar o protótipo de novos e importantes elementos da arquitetura americana.2


2 Friedman, pag. 134. In WENDL. Tradução livre feita pela autora do artigo

© Edith Farnsworth Papers, The Newberry Library, Chicago.

Um detalhe importante chama atenção na fala de Farnsworth. Ela se refere à criação do projeto como “nosso projeto”. Isso nos leva ao entendimento de que, para ela, sua participação na concepção do projeto era inequívoca e, portanto, a autoria seria coletiva, nascida do vínculo estabelecido entre as ideias de Mies, como arquiteto, e dela, como contratante.

Nos dois relatos percebemos o entusiasmo com o projeto pelo seu caráter efetivamente inovador quanto às noções de caráter doméstico dentro da arquitetura. Seria a primeira casa que transportaria materiais e técnicas, como o aço e o vidro, das grandes construções industriais e empresariais, fundamentadas em uma logística de base econômica, para o plano doméstico privado.

***

Do confronto dos dois pontos de vistas discursivos apresentados surgem diferenças que se referem diretamente à distinção entre o plano ideológico e o plano do real. É uma divergência de natureza, que diferencia as essências de cada perspectiva: do projeto modernista, tal como oficialmente tem sido divulgado; e da experiência sensível, tal como mostram os registros das vivências de quem habitou a casa durante vinte anos. É preciso entender mais do que o conjunto elementar que compõe a Farnsworth House como signo estético. É preciso entrar no contexto histórico da linguagem que abrange esse signo específico, porque toda linguagem está consignada a um determinado tempo e espaço. É necessário identificar as falas aplicadas à casa e aos personagens que dela se ocuparam nas distintas conjunturas. Quem era Mies van der Rohe, quando foi contratado por Edith, e quais eram os enunciados relativos a ele? Quem era Edith Farnsworth, a contratante, e como ela foi representada pela história (de 1940 a 2020)? Em que época a casa foi projetada e onde? Quais os elementos construtivos propostos por Mies? Qual foi a reação de Edith depois da casa pronta e o que isso acarretou? E, por fim, o que ocorreu com a casa ao longo tempo (de 1951 até 2020)? Finalmente, com esses dados, podemos confrontar os discursos.

Mies nasceu na Alemanha em 1886. Herdou de seu pai, um profissional da cantaria, o conhecimento sobre o trabalho com rochas, que o auxiliou no desenvolvimento de seus projetos de característica modernista. Em 1930, ele foi convidado a ser diretor da Bauhaus, época em que ele projetou o pavilhão alemão exposto na feira Universal em Barcelona (1932). Por conta da situação política na Alemanha, em 1933 Mies foi para os Estados Unidos e lá chegou com o status de grande arquiteto da nova modernidade. Os americanos o receberam com entusiasmo. A América pós-primeira guerra estava crescendo industrialmente e buscando reconhecimento na produção cultural do mundo.

É dentro deste contexto que ele recebe a encomenda e projeta a Farnsworth House. A obra foi construída entre os anos de 1950 e 51 com importantes modificações no projeto original de 1947. A casa foi construída a 30 metros da margem do Fox River, na cidade de Plano, no estado de Illinois. Fiel a seus princípios, Mies projetou um paralelepípedo de 9 por 23 metros, construído como uma palafita a 1,5 m acima do chão, para resistir às cheias do rio. A casa de um pavimento só, é constituída por uma estrutura externa de aço, de oito pilares (perfis I). Os perfis I estruturais são ao mesmo tempo esteticamente expressivos. Entre eles, ligando o piso ao teto e rodeando toda a casa, foram colocados grandes painéis de vidro. Isso abria os ambientes à paisagem circundante.


© Edith Farnsworth Papers, The Newberry Library, Chicago.

A forma geométrica utilizada pelo arquiteto, propunha gerar uma relação centrífuga com a natureza. Sua proposta tinha como objetivo construir um abrigo em seu estado mais simples. Como afirmou Mies:

Se você vir a natureza através das paredes de vidro da Casa Farnsworth, ela ganha uma significância muito mais profunda do que se fosse vista desde o exterior. Dessa maneira, se diz mais sobre a natureza – ela se torna parte de um todo maior.3

3 Mies van der Rohe. In FRACALOSSI.
As únicas paredes da casa são a de um pequeno módulo central contendo as estruturas dos banheiros, cozinha e lareira, partes hidráulicas, de esgoto e energia. No site oficial da casa encontramos o seguinte texto de abertura:
A Farnsworth House é uma das obras mais significativas de Mies van der Rohe, de importância igual a de monumentos canônicos como o Pavilhão de Barcelona, construído para a Exposição Internacional de 1929 e o Seagram Building de 1954-58, em Nova Iorque. Seu significado é duplo. Primeiro, como um de uma longa série de projetos de casas, a Casa Farnsworth incorpora um certo ponto culminante estético no experimento de Mies van der Rohe com esse tipo de construção. Segundo: a casa é talvez a expressão mais completa dos ideais modernistas que haviam começado na Europa, mas que foram consumados em Plano, Illinois. Como o historiador Maritz Vandenburg escreveu em sua monografia sobre Farnsworth House: 'todo elemento físico foi destilado até sua essência irredutível. O interior é sem precedentes transparente para o local ao redor, organizado de maneira organizada. Toda a parafernália das salas de estar tradicionais - salas, paredes, portas, acabamentos internos, móveis soltos, quadros nas paredes e até objetos pessoais - foi abolida em uma visão puritana da existência simplificada e transcendental. Mies finalmente alcançou a meta para a qual ele vinha trabalhando há três décadas.'4
Disponível em The Edith Farnsworth House. tradução livre feita pela autora do artigo.
Esse texto se inicia colocando a casa dentro do patamar de obra icônica, antes mesmo de descrever o formato, o material, a época e o tamanho. E a coloca como uma das três principais obras do arquiteto. Utiliza uma descrição de Maritz Vanderburg, historiador e fundador da Architecture and Technology Press, de 2005, para justificar teoricamente a casa como símbolo da arquitetura modernista. Na descrição, o tom eleva a obra para algo além da funcionalidade de casa. Todos os pertences de uma família, ou pessoas que provavelmente iriam ocupar o ambiente foram chamados de “parafernálias” e, segundo ele, foram abolidos, dando o estatuto à casa de obra de arte museológica, respeitando as tradições puritanas norte-americanas.

Assim era a casa. Toda aberta, transparente para que a vida nela fosse imanente à natureza e a natureza à ela. Percebe-se logo que Mies começa a utilizar o encargo da criação da casa para dar forma à sua própria visão de modernidade. Ao ignorar os pedidos específicos de sua cliente, o projeto torna-se para ele um experimento em arquitetura do seu conceito modernidade. Apesar das controvérsias envolvendo a construção, o mundo arquitetônico receberia com muito entusiasmo a Farnsworth House. Ela expressaria o mais novo princípio de planta aberta, proposto inicialmente por Le Corbusier.

Em contraste a essa visão, temos a da contratante. Edith era uma médica muito bem sucedida, pesquisadora de nefrologia. Seus esforços experimentais na Northwestern University produziram inovações contra a nefrite renal. Ela também se formou em literatura e composição em inglês pela Universidade de Chicago. Os resultados de seus estudos estão expressos em três caixas cheias de cadernos com percepções e relatos poéticos em forma de diário na Biblioteca Pública de Chicago. Edith era uma mulher independente, uma intelectual que gostava de frequentar ambientes culturais da, assim chamada, nova modernidade. Em 1945, durante um jantar, ela conhece Mies e o convida a projetar-lhe uma casa de campo em um terreno que ela tinha à beira do rio Fox. Edith estava longe de imaginar que essa construção lhe traria frustrações, o valor da obra excedeu em 33 mil dólares, o que a motivou a iniciar um processo judicial que ela perderia ao fim.

Quando Edith se mudou para a casa, em dezembro de 1950, o telhado vazou e o aquecimento produziu uma película de vapor que se condensou no interior das paredes de vidro. Segundo Farnsworth, a casa era inabitável, aberta aos mosquitos, sem privacidade, com problemas de ventilação, inclusive em relação à lareira e sem o conforto que ela desejava para uma casa de campo, onde ela poderia convidar amigos sem ter que colocar um colchão no chão. Em suas memórias, Edith descreve intensivamente sua vivência com a casa. No relato abaixo, a Dra. Farnsworth reflete sobre suas primeiras experiências nela, quando havia acabado de ser construída. Vemos uma contradição entre o discurso tornado oficial, que idealiza a estrutura de aço e vidro, e as percepções da moradora.

No final de 1950, parecia possível passar uma noite em casa e, na véspera de Ano Novo, trouxe alguns colchões de espuma e vários outros artigos indispensáveis e me preparei para habitar a casa de vidro pela primeira vez. Com a luz de uma lâmpada nua de sessenta watts em uma extensão, eu armei o colchão de espuma de borracha no chão, liguei os fornos de ar e peguei algo para comer. Manchas e pinceladas permaneciam aqui e ali nas extensões das paredes de vidro e as soleiras cobertas de gelo. Os prados silenciosos do lado de fora, brancos de neve velha e endurecida, refletiam a lâmpada sombria lá dentro, como se a casa de vidro fosse uma lâmpada não sombreada de watts não calculados que iluminava as planícies de inverno. O telefone tocou, destruindo a cena solitária.

Era uma noite desconfortável, em parte pela nova exposição proporcionada pelas paredes de vidro não cortadas e em parte pelo pavor das intenções implacáveis de Mies. As despesas relacionadas à casa haviam aumentado muito além do que eu esperava ou poderia pagar, e a desolação glacial daquela noite de inverno mostrava muito claramente quanto mais teria que ser gasto antes que o local pudesse se tornar remotamente habitável.5

Edith Farnsworth. Memórias, cap. 13 – sem página. In WENDL. Tradução livre feita pela autora do artigo

Edith se incomodou tanto com a casa que, além de iniciar um briga judicial, que ela perdeu e foi obrigada a pagar os custos do processo, ela se dedicou a denunciar a casa em uma das revistas mais lidas pelo público não especializado daquela época.

No artigo “The Threat to the Next America”, a editora Elizabeth Gordon toma partido de Edith e acaba denunciando o arquiteto e sua obra: “decidi romper o silêncio” (Gordon, 1953: 126). Para ela havia uma “cultura ditatorial” que colocava a intimidade pessoal do lar em detrimento de uma nova estética do aço e do vidro. A linha entre o modernismo aceitável e o inaceitável, segundo Gordon, parecia depender do passo da "eliminação das paredes divisórias, de modo que uma casa tenda a ser uma sala pública com áreas abertas para dormir, comer, brincar etc." ao “uso máximo de vidro sem dispositivos corretivos para sombra ou privacidade”. A arquitetura modernista implica, como sugere Gordon, um "passeio" excessivo que requer "mecanismos corretivos" para se tornar social.

No artigo publicado em 1953 na revista House Beautiful, Gordon estava empenhada em destruir a imagem de Mies e da arquitetura moderna denominada também de International Style (nome dado em 1932), abrindo um debate público sobre o direito do modernismo europeu de conquistar a casa do campo americano. Considerava o projeto Farnsworth House uma “má arquitetura moderna” e, com palavras agressivas e xenofóbicas, descreveu Mies van der Rohe como um totalitarista de origem alemã, que tentava impor suas ideias fascistas em uma América liberal.

Gordon dedicou duas edições da revista para denunciar o Estilo Internacional. Na primeira edição, a editora poupa Mies e Edith, fazendo uma crítica mais generalizada em torno desta nova arquitetura. Na edição seguinte, a revista apresenta uma entrevista com Edith Farnsworth, no qual ela relata o processo de construção da casa e sua relação atual com a obra.

Há muitas coisas práticas que eles (discípulos de Mies) se recusam a considerar. Por exemplo, Mies queria que o armário de divisórias tivesse um metro e meio de altura por razões de 'arte e proporção'. Bem, eu tenho um metro e oitenta de altura. Como minha casa é toda 'espaço aberto', eu precisava de algo para me proteger quando tinha convidados.

Eu queria poder trocar de roupa sem a cabeça parecer vagar por cima da divisória sem um corpo. Seria grotesco.6


Gordon, 1953: 129. In PRECIADO. Tradução livre feita pela autora do artigo

© Edith Farnsworth Papers, The Newberry Library, Chicago.

O conflito foi desencadeado de tal modo que as críticas passaram a ser dirigidas à Edith. E, nesse contexto, mesmo sendo ela médica e acadêmica - uma escolha que a colocou em desacordo com as expectativas sociais das mulheres nas décadas de 1940 e 1950 – as recriminações recaíram sobre sua imagem. Apesar de uma carreira desafiadora e prodigiosa, Farnsworth sempre expressou desconforto em relação aos olhares de reprovação e sabia muito bem que estava fora dos padrões da sociedade, mas nunca deixou de questionar minuciosamente os costumes a que se esperava que se conformasse. Seu relacionamento com Mies também poderia ser interpretado dessa maneira: ela buscava uma relação intelectual, ao invés de um parceiro romântico, e ficou desiludida; “Talvez nunca tenha sido um amigo e colaborador, por assim dizer, o que ele queria”, ela escreve, “mas um idiota e uma vítima.”. Essa desilusão de Edith se contrapõe com a imagem que ela havia criado em seu retorno da exposição de Nova Iorque. O princípio da colaboração parece ter sido apenas uma ilusão.

Essas referências são importantes segundo Kathleen LaMoine Corbett. Em sua tese de doutorado, Tilting at Modern: Elizabeth Gordon’s “The Threat to the Next America”, ela levanta problemas relacionados ao gênero que impregnam os discursos acerca da Farnsworth House, principalmente os presentes na primeira biografia de Mies van der Rohe, escrita por Franz Schulze, e os declarados nas repercussões dos dois artigos publicados na revista House Beauty de 1953. É importante identificar a agressividade misógina de Franz Schulze ao descrever Edith, por conta de sua contestação em relação ao - homem - arquiteto e sua obra.
Edith, não era uma beleza. Um metro e oitenta de altura, porte desajeitado e, como as testemunhas concordaram, de feições bastante equinas, ela era sensível a respeito de sua pessoa física e pode muito bem ter compensado isso cultivando seus consideráveis poderes mentais. Edith é apresentada em um limiar entre feminilidade, masculinidade e animalidade - um espaço ocupado pelo vampiro e pela lésbica - como uma mulher de características excessivamente fortes e ameaçadoras. Como uma amazona urbana privada de seu cavalo, Edith parece estar possuída por características animais.7
Schulze (1985, pag. 258) in PRECIADO. Tradução livre feita pela autora do artigo.
Nesse texto de Schulze, a construção imagética dos personagens é inequivocamente constituída de intencionalidades - assim como propõe o autor francês Roland Barthes, quando afirma que os mitos têm natureza ideológica. Edith, que era uma mulher extremamente inteligente, importante no campo da medicina da época, foi descrita como uma vilã ou a megera dos contos infantis. Foi julgada segundo um critério androcêntrico inadequado e maldoso, unicamente baseado no efeito de sua aparência física. Em seu texto, Schulze retratava-a como uma aberração, que era compensada com ameaças e chantagens intelectuais. Ele distorceu a causa de sua frustração com a casa, insinuando que o motivo fosse uma desilusão amorosa sofrida com o arquiteto.


© Edith Farnsworth Papers, The Newberry Library, Chicago.

Mies aparece na história como um homem "de grande charme e carisma", enquanto Edith "era dolorosamente solitária, entediada e sobrecarregada" (Friedman, 1998: 131). Segundo biógrafos e ensaístas daquele tempo, a denúncia de Edith nada tinha a ver com a qualidade do projeto, tratava-se de uma reação motivada pelo ressentimento procedente de sua frustração amorosa. Foi essa versão que se tornou popular com a publicação e divulgação de Mies Van Der Rohe - A Critical Biography - Franz Schulze. Ele cita o próprio Van der Rohe, apesar de nunca ter investigado as circunstâncias ou a precisão do relato: “a senhora esperava que o arquiteto fosse junto com a casa. " (Schulze, Mies van der Rohe, 253.).

A Farnsworth House integra o acervo histórico nacional dos Estado Unidos como uma obra prima da arquitetura moderna. Ela transpõe a imaterialidade, feita para moradores imateriais. Seus móveis são bem ordenados e projetados - assim é o texto que lemos ao abrirmos o site oficial da casa, uma expressão da genialidade de um homem que tem a capacidade de materializar uma estrutura espectral para habitantes imateriais.

***

Umberto Eco em seu livro “A estrutura ausente” reflete sobre a impossibilidade de se entender a arquitetura ou os objetos de design a partir, apenas, de sua funcionalidade. E para realizar uma análise mais completa e complexa destas produções, como a que empreende a semiótica, devemos olhar para elas não apenas como signos funcionais, mas como manifestações fenomenológicas e culturais mais complexas.

Se entendermos que a arquitetura da Farnsworth House é tão constituída de aço, vidro e cimento, quanto dos mitos que a impulsionaram à existência, podemos dizer que ela é a primeira “caixa de vidro doméstica” da história, com tudo que isso possa significar em termos de modelo racionalista de existência. Seus materiais, e projeto carregam toda uma carga semiótica que tem origem nas ideologias problemáticas que fundaram a modernidade.

A casa é construída, como palafita, a 1,5 m do chão. Essa forma construtiva é essencialmente uma resposta funcional e foi criada para responder ao problema das enchentes; no caso da Farnsworth House, proteger a casa das cheias do rio. Mas este paralelepípedo torna-se um signo do tipo simbólico. Além de possuir as características do signo estético, como obra de arte do arquiteto Mies Van Der Rohe, à casa foi atribuída, arbitrariamente, a função de representar o movimento modernista.

A casa flutua sobre finos pilares. Ela se eleva, transcende a matéria. A obra não encosta mais na terra, ela flutua sobre ela. O ser humano não mais olha para cima para contemplar a natureza. Agora ele a observa de igual para igual. A elevação da casa não só tem a função de proteger da violência incontrolável do meio, mas também de colocar a forma geométrica inventada pela humanidade no mesmo nível daquelas criadas pela natureza.

Sinto calma implacável? ...A verdade é que nesta casa, com suas quatro paredes de vidro, me sinto como um animal à espreita, sempre em alerta. Eu estou sempre inquieta. Mesmo à noite. Eu me sinto como uma sentinela de guarda dia e noite. Eu raramente posso me alongar e relaxar...

O que mais? Não guardo uma lata de lixo embaixo da pia. Você sabe por quê? Porque você pode ver toda a 'cozinha' da estrada no caminho até aqui e a lata estragaria. A verdade é que nesta casa, com suas quatro paredes de vidro, me sinto como um animal à espreita, sempre em alerta. Eu estou sempre inquieta. Aparência de toda a casa. Então eu a escondo no armário mais abaixo da pia. Mies fala sobre seu 'espaço livre': mas seu espaço é muito fixo. Eu não posso nem colocar um cabide em minha casa sem considerar como isso afeta tudo do lado de fora. Qualquer arranjo de móveis se torna um grande problema, porque a casa é transparente, como um raio-X.8

Joseph A. Barry “Report on the American Battle between Good and Bad Modern houses” Houses Beautiful 95, May 1953 – 270. In WENDL. Tradução livre feita pela autora do artigo
A palafita para Edith acaba recriando sentidos os quais se afastam completamente do eixo semântico de casa: de jaula, quando está dentro, de vitrine quando está fora. No entanto, apesar da raiva dirigida a Mies, por sua arrogância e pelo custo do projeto, a casa finalmente se tornou seu lugar de fim de semana, seu desejo original. Edith a usou com esse propósito durante 20 anos e, ao longo deste período, ela escreveu algumas cartas revelando sua relação com a casa. Se nos primeiros anos o discurso caminhou pelo desconforto, ao longo do tempo, em seu diário, ela revela os pequenos prazeres e encontros com sua morada. Em seu diário, ela conta dos primeiros dias na casa, e dos muitos inadvertidos invasores cujo objetivo era observá-la mais de perto. Em um trecho de seu diário, Farnsworth conta sobre ter compartilhado o jantar com um estranho — um eminente professor de arte escocês que veio ver a casa — ocasião em que discutiram literatura e os horrores da guerra. Ela se conscientiza da habilidade satisfatória que a casa tem, não apenas de trazer beleza natural e espiritual para dentro de suas paredes, mas de proporcionar momentos de agradável conexão como este:
O Sr. Michael Jaffe chegou uma tarde e eu gostava dele o suficiente para compartilhar uma galinha no jantar. Naqueles dias eu tinha uma pilha de madeira adequada e a luz do fogo trouxe as sombras de botões inchados do Maple preto no final do terraço. Falamos sobre o [autor britânico] Cyril Connolly e sua "Unquiet Grave" e o colapso da crítica Horizon. “Você se lembra da terrível história da mancha de óleo - no Báltico, não foi isso que prendeu as gaivotas que não puderam sair da superfície e os meninos ficaram apedrejando-as pelas costas? Acho que isso foi na última edição da Horizon? Eu acho que foi na última edição de Horizon.
(...) “Aquela noite, passei na companhia de um estranho que compartilhava não apenas a galinha, mas Connolly em sua angústia penetrante e sua fascinante anedota, os botões inchados e os pássaros moribundos. - A casa de vidro ganhou vida e se tornou minha própria casa.9

Farnsworth, Edith. Memórias 12-13. In WENDL. Tradução livre pela autora do artigo.
Farnsworth manteve um compromisso ao longo da vida em produzir arte. Isso ocorreu de forma intensiva como moradora da casa de 1951 a 1971. Durante este período, ela escreveu poemas e tirou fotografias traduzindo seu relacionamento com o espaço de vidro. Suas fotografias contrastam com as fotos oficiais. Da casa, emergem plantas selvagens e uma floresta densa. A transparência se tornou opaca com as telas de alumínio que Edith instalou na varanda, para se proteger da quantidade enorme de mosquitos que surgiam do rio, apenas a trinta metros de distância. As folhagens e trepadeiras selvagens se enroscavam nas vigas de aço, e as teias de aranha se emaranhavam nas estruturas aparentes. As janelas de vidro nas fotos alternam entre transparência e espelho, prisma e jogo de sombras, com a luz do sol que transpassava entres as folhas e galhos. Essas fotografias ilustram as percepções de Edith sobre a domesticação violenta da natureza: "(...) algo aconteceu com a natureza (...) ela se tornou secularizada e até domesticada. Hoje, ela esfrega o focinho na vidraça.”10

© Edith Farnsworth Papers, The Newberry Library, Chicago.

10 Edith B. Farnsworth. “The Poets and the Leopard”. Northwestern TriQuartely (Outono, 1960), 6 – 12, citação está na página 6. Tradução livre feita pela autora do artigo.
Os poemas de Farnsworth contribuem para uma percepção de beleza a partir da vivência com o ambiente. A casa de vidro surge nas obras não como cenário ou objeto neutro, ela é o “sujeito” que proporciona experiências e contemplações, que ativa os acontecimentos. Os poemas11 avaliam os eventos transitórios que a casa proporciona.
11 FARNSWORTH, Edith. “Artefact”. Memoirs. Chicago: Newberry Library Archives. – caixa 2, folder 34.  
Xenia 1.

Dear little insect
Known to everyone as “fly”, I don’t know why,
This evening almost at dark, 
As I was reading Deuteroisaiah 
You reappeared beside me, 
But you didn’t have your glasses, 
You couldn’t see me; 
Nor could I, without that little glint, 
Recognize you in the gloom.


Artifact.

The dawn was close this morning when I woke
To hear some flying creatures strike the pane
Of glass beside my bed – strike and flutter
For a moment, strike and beat
Bewildered wings upon the glass.

There was no light.
It was not day, or night.
I could not see the wounded flying thing
But I could hear the fluttering, breaking wing
Beating its moment out upon my pane
Of glass. Why does it not recoil, or die?

The unseen wings are slipping down the pane;
The splintered feathers agonize in vain.
The moments pass
And in the grass
Below, there lies
My hope, and dies


© Edith Farnsworth Papers, The Newberry Library, Chicago.

Um pássaro bateu em sua janela no poema “Artifact”. A casa surge como algo que provoca experiências. Um pássaro caído na grama, com suas asas quebradas, morto. A interação com a casa dá ao impacto do animal uma conotação de perda. A contradição da casa modernista – uma obra a ser contemplada versus uma casa a ser experienciada.
Vemos, no decorrer dessas análises, como a imaginação trabalha nesse sentido quando o ser encontrou o menor abrigo: veremos a imaginação construir "paredes" com sombras impalpáveis, reconfortar-se com ilusões de proteção ou, inversamente, tremer atrás de um grande muro, duvidar das mais sólidas muralhas. Em suma, na mais interminável dialética, o ser abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos Sonhos.12
12 BACHELARD, pag. 200
Após sua venda em 1972 para Peter Palumbo, a casa passou por uma grande restauração. O novo proprietário contratou a empresa do neto de Mies van der Rohe, Dirk Lohan, para o restauro, seguindo a projeção original de seu avô. Foram colocados os móveis propostos por Mies, e, toda a “parafernália” da vida de Edith foi eliminada, fazendo com que a casa retornasse a 1951. Uma abstração. O projeto nunca foi pensado para ser habitado. A vida iria estragar sua transcendência. Sua “imaterialidade” e “espiritualidade” não estavam na proposta de um simples habitar, dedicado à contemplação da natureza, mas retornava à sua condição de obra de arte histórica, objeto museológico: uma casa modernista da década de 1950. Uma maquete em escala real da representação de uma arquitetura do estilo internacional. Ao retornar à sua condição inicial como modelo, de paradigma estético ideal, ganhou um sentido mítico. A história vivida nela por Edith precisou ser apagada. O passado foi sequestrado, mascarado e esquecido. O mito ocupou a realidade.

Como propõe Umberto Eco, podemos pensar a cultura como sistema de signos e isso significa que no universo da cultura, os objetos, imagens e até mesmo as pessoas são causas e agentes de discursos. Esses discursos são construídos historicamente por sujeitos históricos de um espaço e um tempo. Eles falam para alguém que quer ouvir. Os discursos constituídos sobre a casa Farnsworth e seus principais personagens, contratante e contratado, devem-se a um pequeno grupo de pessoas, em sua origem; discursos estes que perduram até nossos dias, ao menos no site oficial da casa Farnsworth.

No exercício de questionar tais discursos temos duas questões que se entrelaçam. Uma delas diz respeito à contradição entre a função essencial da obra casa - lar, - e a função poética da obra modernista - objeto de museu. E outra segue por um caminho de indagação em relação aos recursos utilizados para sustentar e fundamentar o discurso. Nessa segunda questão, significou, no caso da casa Farnsworth, apagar a história de sua trajetória de casa habitada, manchando a imagem da mulher que a contratou. O conflito entre o projeto do arquiteto, que deveria ser preservado na sua concepção original e criativa, e a dona da casa, que a transformou em seu lar. Mesmo com todas as dificuldades antecipadas e vividas no espaço natural onde a casa foi construída, o discurso foi metamorfoseado para uma questão de superioridade do “homem” criador e da “mulher” que corrompe o projeto original.


© Edith Farnsworth Papers, The Newberry Library, Chicago.


Referências bibliográficas


ECO, Umberto. A Estrutura Ausente. São Paulo: Editora perspectiva,1971.

BACHELAR, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

CORBETT, Kathleen LaMoine. Tilting at Modern: Elizabeth Gordon's "The Threat to the Next America". Chapter one: the world and the woman behind “THE THREAT TO THE NEXT AMERICA”. 2010. Tese (Doutorado). Architecture in the Graduate Division of the University of California, Berkeley, p. 1 – 31 e p.133 – 155.

SCHULZE, F. e WINDHORST, Edward. Mies van der Rohe; A Critical Biography. Chicago: University of Chicago Press. 1985.
BARRY, JA (1953). Report on the Battle between Good and Bad Modern Houses. House Beautiful 95 (5): 172–73; 266–72.

FARNSWORTH, Edith. Memoirs. Chicago: Newberry Library Archives.

FRIEDMAN, AT. People who live in glass houses: Edith Farnsworth, Ludwig Mies van der Rohe, and Philip Johnson. Women and the making of the modern house: a social and architectural history. New York: Abrams. 1998
GORDON, E. The Threat to the Next America. House Beautiful 97(4): 126-130; 250-251.1953

WENDL, Nora. Uncompromising Reasons for Going West: A Story of Sex and Real Estate, Reconsidered. Thresholds,  ‎Cambridge, Massachusetts, (43), pp. 20–361. 2015.
PRECIADO, Paul B. Traduzido por HARRIS, Keith. Mi(e)s Conception: The Farnsworth House and the Mystery of the Transparent Closet. Feminist, Queer and Trans Geographies. Novembro, 2019.
Disponível em: https://www.societyandspace.org/articles/mies-conception-the-farnsworth-house-and-the-mystery-of-the-transparent-closet.

FRACALOSSI, Igor. Clássicos da Arquitetura: Casa Farnsworth / Mies van der Rohe 27 Mar 2012. ArchDaily Brasil. Acessado 2 Ago 2020.
Disponível em: https://www.archdaily.com.br/br/01-40344/classicos-da-arquitetura-casa-farnsworth-mies-van-der-rohe

Edith Farnworth House Official Website
https://farnsworthhouse.org/history-farnsworth-house/