Acordo de Confiança
Curadoria: Jacopo Crivelli e Olivia Ardui
Biblioteca Mário de Andrade
Quais são as partes envolvidas nos acordos que regulam uma exposição (entre elas, o público visitante, os artistas, os curadores, os colecionadores, a instituição, os patrocinadores...)? Qual o peso de cada uma delas na negociação que leva à definição do que e como é mostrado? Quais e quantos são os contratos, pactos ou acordos estabelecidos entre estas partes? Considerando que pertencemos todos a pelo menos uma das partes, qual o papel que cabe a cada um de nós neste jogo de poderes?
A partir do conceito de “acordo” — que em alguns casos torna-se “contrato”, com suas cláusulas e obrigações, e em outros, “pacto” implícito e informal —, a exposição se configura como um convite a uma reflexão sobre os jogos de poder e sobre os conflitos de interesse, que, desde sempre e não apenas no Brasil, regulam a sociedade e, mais especificamente, o sistema da arte. Nesse sentido, é significativo que a apropriação, réplica, simulação ou paródia do modus operandi do contrato esteja no cerne de uma parcela bastante significativa da produção contemporânea, especialmente a que se insere na linhagem da arte conceitual norte-americana e na dos conceitualismos de outras partes do mundo.
Mais do que se concentrar nessa iconografia, contudo, a exposição busca refletir sobre as implicações metonímicas e metafóricas da ideia de acordo. Em outras palavras, espera-se que as obras aqui reunidas funcionem [metonimicamente] como a ponta do iceberg, que é sempre o indício de algo maior, submerso e invisível; e que sejam entendidas [metaforicamente] como instrumentos que apontam, para além do acordo específico que elas próprias regulam, para a importância de pactos, tácitos ou explícitos, no âmbito social, político e institucional. Além disso, essas obras evidenciam a necessidade de uma confiança recíproca entre as partes, que deveria constituir o alicerce de qualquer relação, assim como para as quebras recorrentes dessa confiança, em detrimento das minorias e dos dissensos.
A reflexão sobre as normas que devem pautar uma exposição que acontece em âmbito institucional foi central na concepção da mostra. Por tratar-se de uma das instituições culturais com maior visitação na cidade, a Biblioteca Mário de Andrade é, evidentemente, um local onde a reflexão sobre o valor do que "público" torna-se ainda mais relevante. A maioria das obras incluídas na exposição provém de coleções particulares, o que, por um lado, a torna mais singular, por tratar-se de obras geralmente pouco acessíveis ao grande público, e por outro, busca estimular a discussão, ainda incipiente, sobre a valorização da obra ao ser validada por um circuito institucional, e as normas de condutas que deveriam regular essa validação.
O projeto de acordo de confiança nasceu de uma contato entre Charles Cosac e Pedro Barbosa, com o objetivo de pensar uma exposição de publicações, cartazes e outros materiais de artistas da coleção moraes-barbosa (pertencente a Barbosa e sua esposa, Patricia Moraes), na Biblioteca Mário de Andrade, dirigida por Cosac. Pouco a pouco, a mostra foi se tornando, por um lado, mais convencional, ao incluir obras da mesma coleção, de outros colecionadores e de instituições internacionais, além de material de arquivo da própria Biblioteca; e por outro, mais claramente temática, ao focar nas implicações do conceito de acordo, que se tornou um instrumento para convidar a uma reflexão transversal em relação às obras, que transcende o âmbito artístico para tocar em questões institucionais, políticas e sociais que nos interessam diretamente. Além dos gastos de manutenção, contemplados no orçamento anual da Biblioteca, as despesas da exposição foram cobertas com recursos particulares e o apoio de empresas, para quem vai nosso agradecimento. Jacopo Crivelli Visconti, que concebeu e curou a exposição na forma como ela pode ser vista agora, é curador da coleção moraes-barbosa desde 2012. Olivia Ardui, co-curadora da exposição, realizou uma mostra com obras da coleção, em 2013.
O contexto está dado. A clareza é a base da confiança. A discussão está aberta.
mark lombardi
[Estados Unidos, 1951-2000]NuganHand Bank Sydney, Australia,
c. 1974-80, 1995
Grafite sobre papel
87 x 112 cm
coleção moraes-barbosa, São Paulo
Em seus diagramas, meticulosamente desenhados à mão, com lápis ou caneta sobre papel, Mark Lombardi evidencia as intrincadas redes de relações entre governos, empresas e personalidades de vários âmbitos em escândalos de corrupção, tráfico de drogas ou ainda na indústria da guerra. O artista iniciava recolhendo uma enorme quantidade de informações sobre um evento, uma empresa ou um personagem de seu interesse mas os rizomas que suas obras descrevem parecem dissolver qualque ponto de partida. É o caso do trabalho sobre o banco NuganHand Bank que, no diagrama de Lombardi, é colocado em relação, direta ou indiretamente, ao governo da Líbia, à família Rockefeller e até a Frank Sinatra e a máfia norte-americana. Essas “estruturas narrativas”, como o próprio artista as definia, trazem a tona os acordos secretos, articulados por agentes do poder político, financeiro e midiático a nível mundial. No contexto da exposição, a teia de relações de Lombardi funciona como metáfora tanto dos acordos, pactos, contratos e conspirações aqui reunidos, quanto das multíplices relações que poderiam ser identificadas entre as próprias obras.
maria loboda
[Polônia, 1979]Play of the jewels (10 chalcedonies,
9 amethysts, 10 pumice rocks,
3 pyrites), 2012
10 calcedônias, 8 ametistas, 10 pedras-pomes,
3 piritas, bandeja de madeira
36 x 36 x 3,5 cm
coleção moraes-barbosa, São Paulo
Play of the jewels alude ao jogo homônimo, que testa a capacidade de observação e de memorização. Por um tempo limitado, um conjunto de objetos de formas e materiais distintos é mostrado a um jogador. Em um segundo momento, o conjunto é retirado e apresentado com modificações a serem identificadas por ele. O jogo também é conhecido em inglês como “Kim’s game”, em referência ao personagem principal de Kim, romance de Rudyard Kipling onde um espião é treinado a confiar unicamente no que vê com seus próprios olhos. De maneira similar, o título da obra, que parece enumerar precisamente o conjunto de pedras apresentado, na verdade não corresponde ao que de fato se encontra diante do espectador. Maria Loboda questiona assim a confiança depositada nos fatos que nos s.o apresentados, evidenciando as possíveis dissonâncias entre uma situação real e o discurso que lhe é associado.
andré cadere
[Polônia, 1934–França, 1978]Untitled A00102030 “35” 7 X 9, 1975
Madeira pintada
41 x 3,5 cm
coleção moraes-barbosa, São Paulo
André Cadere criou seu primeiro bastão de madeira [barre de bois, no original francês] em 1970, e até o fim da vida produziu aproximadamente duzentos deles. A sequência das cores em cada bastão é única, e organizada com base em regras de permutações matemáticas, nas quais o artista introduzia, invariavelmente, um erro: neste caso, seguindo a progressão dos primeiros dois blocos de três cores, o terceiro deveria ser Amarelo-Vermelho-Azul, e não Vermelho-Amarelo-Azul. O cerne da obra de Cadere, porém, não reside nos bastões em si, mas em como eles eram utilizados: o artista carregava-os constantemente, expondo-os tanto em museus e galerias (frequentemente de maneira improvisada e clandestina, sem ter sido convidado) como em restaurantes, lojas, ruas e outros espaços de grande visitação. Da mesma forma como introduzia um erro na sequência dos bastões, Cadere usava sua própria obra como um vírus no sistema rigidamente codificado da arte. Nesse sentido, a decisão de curadoria de expor sua obra aqui numa vitrine, responde tanto a critérios de segurança, quanto ao desejo de levar a uma reflexão crítica sobre a maneira como são frequentemente expostas obras que necessitariam da constante participação do público, como, em âmbito brasileiro, os Bichos, de Lygia Clark ou os Parangolés, de Helio Oiticica, para citar apenas exemplos conhecidos.
darren bader
[Estados Unidos, 1978]antipodes: proposal for an art collection, 2017
Tinta sobre papel
Dimensões variáveis
Cortesia do artista
Todos os trabalhos da série antipodes [antípodas], de Darren Bader, tomam como ponto de partida a premissa, bastante presente na produção contemporânea a partir das obras conceituais do final dos anos 1960, que uma obra é essencialmente uma ideia. Segundo o artista, uma obra pode existir mesmo que dividida em várias partes, e sem que essas partes possam ser vistas ao mesmo tempo, por encontrar-se em vários pontos do mundo. Além disso, no caso específico desta proposta para uma coleção de arte, o trabalho pode ser ao mesmo tempo uma obra de Darren Bader, e também a obra, já existente, de outro artista, que passa a ser distribuída em 4, 5 ou 6 diferentes lugares ao redor do mundo. Para além da realização, ou não, dessa proposta, a obra existe como ideia, e é por isso que o artista expõe aqui os certificados que a descrevem e atestam que ela é de autoria de Bader, juntos com a foto da primeira instalação em que ele expôs, em outro formato, a mesma proposta.
cameron rowland
[Estados Unidos, 1988]U66, 2013
Ferro com acabamento padrão
167 x 5 x 6 cm
coleção moraes-barbosa, São Paulo
O trabalho de Cameron Rowland aponta frequentemente para as disparidades sociais e para os acordos de poder que as perpetuam na sociedade capitalista. U66 é uma escultura ready-made, constituída pelo suporte de prateleiras de supermercado mais utilizado nos Estados Unidos, escolha que explicita a preocupação do artista com a superestrutura capitalista. Apesar de parecerem idênticas, as duas peças apresentam uma diferença significativa: o artista colocou uma à venda, enquanto a outra é apenas alugada. Algumas das obras de Rowland, de fato, podem ser alugadas por um valor mensal que as torna, no longo prazo, muito mais caras do que as que são vendidas, o que coloca o colecionador (geralmente um sujeito abastado, portanto acostumado a uma condição privilegiada na negociação) na condição de exploração é qual são relegados os menos favorecidos.
Desde 1957, a empresa Lozier tem comercializado diversas versões de seu sistema de prateleiras sem parafuso Gondola. Como esse modelo virou padrão, a dependência do mercado levou ao surgimento de um comércio de unidades de prateleiras Gondola de segunda mão. Armazéns adquirem unidades das lojas que encerram suas atividades, e as revendem para outros comércios, que só podem se permitir unidades com desconto. Como outros sistemas industriais, o Gondola é composto por uma série de partes padronizadas. As partes usadas são raramente vendidas individualmente, mas são contabilizadas como unidades. Contudo, se removido do conjunto, um elemento individual se torna irreconhecível, pois sua coerência visual depende do contexto. A subtração de uma parte inviabiliza a sua possibilidade de constituir uma unidade. As tentativas de integração dos excluídos passam frequentemente pela melhora das condições econômicas. Cora Walker e outros líderes locais fundaram o Supermercado da Cooperativa de Consumidores Harlem River (Harlem River Consumers Cooperative Supermarket) em 1968, como uma maneira de controlar o seu poder de compra. Variações desse modelo de desenvolvimento econômico comunitário se multiplicaram desde então. Muitas vezes impulsionado por movimentos de desenvolvimento das comunidades, esse modelo é reproduzido em termos de valor pré-existentes.
philippe thomas
[França, 1951-1995]readymadesbelongtoeveryone.
32 cartões postais de Tyne Internationale Kunstverein Hamburg (1993), 7 cartões postais da Kunstraum München (1992) (E. Felten, I. Goetz, S. Goetz, W. Lippert, A. Oetker, A. Tacke, J. Zander), 1 cartão postal da Claire Burrus Gallery (1993), 10 x 15 cm (cada)
Inspirado em artistas e pensadores tão diversos quanto Fernando Pessoa e seus heterônimos, Marcel Broodthaers e seus museus fictícios, e, naturalmente, Marcel Duchamp e seus ready-mades, Philippe Thomas fundou em 1987 a agência de readymades belong to everyone. Todas as obras da agência, criadas pelo próprio Thomas, estavam à venda, com a particularidade que passavam a ser consideradas não apenas de propriedade mas, muito antes disso, de autoria da pessoa que a adquirisse. Imprescindível numa exposição que reflete sobre as relações entre colecionadores, artistas e todos os outros agentes do sistema da arte, a obra de Thomas e da agência readymadesbelongtoeveryone é apresentada aqui por meio de uma espécie de retrospectiva, que inclui várias de suas obras mais conhecidas reduzidas ao formato de cartão-postal, mais uma vez seguindo uma estratégia próxima é linguagem e aos códigos da publicidade antes que propriamente artística.
guerrilla girls
[Estados Unidos, coletivo formado em 1985]Seleção de cartazes criados pelo coletivo, 1985
Técnica mista sobre papel
Dimensões variadas
Desde 1985, as Guerilla Girls, grupo de artistas ativistas americanas, desenvolveram uma série de cartazes, flyers e ações que evidenciam as desigualdades raciais e de gênero, principalmente no que diz respeito ao sistema da arte. Para manter o anonimato durante as suas intervenções ou aparições públicas (como palestras, workshops e exposições), as artistas usam máscaras de gorila características e recorrem a pseudônimos de artistas reconhecidas e já falecidas. Manejando com humor a linguagem e as estratégias da publicidade, produzem materiais gráficos que expõem estatísticas sintomáticas da baixa representatividade de mulheres e artistas não brancos em publicações, exposições, acervos de museus e coleções privadas, constituindo um dos raros exemplos de “crítica institucional” bem-humorada.
alfredo jaar
[Chile, 1956]September 15, 2009
Impressão digital a jato de tinta em envelope Manila e fotografia
Fotografia: 21,5 x 28 cm
Envelope : 23 x 30,5 cm
Coleção Camilla e Eduardo Barella, São Paulo
Alfredo Jaar tem abordado em seu trabalho as desigualdades, as injustiças e os conflitos, sociais e políticos, da sociedade capitalista. September 15 consiste em uma fotografia da tumba de Karl Marx, o filósofo e teórico socialista que previu a crise do modelo capitalista, de autoria do próprio artista, guardada num envelope.
Conforme explicitado no texto no envelope, ao adquirir o trabalho, o proprietário se compromete a olhar para a imagem apenas uma vez por ano, no dia 15 de setembro, aniversário do colapso do Lehman Brothers. A quebra desse banco de investimentos norte-americano, em 2008, além de constituir uma das maiores falências da história dos Estados Unidos, desencadeou uma crise financeira com poucos precedentes. Se as análises de Marx podem ajudar a entender acontecimentos como a quebra de um banco, o fato que a imagem represente sua tumba torna o trabalho sutilmente ambíguo.
robert barry
[Estados Unidos, 1936]5 Telepathic Pieces, 1969
Vinil recortado sobre parede
Dimensões variáveis
Cortesia do artista e untilthen, Paris
Em 1969, Robert Barry concebeu uma série de trabalhos telepáticos, nos quais se esforçava para transmitir psiquicamente uma determinada mensagem ao público. Nas palavras do artista, “o trabalho é sempre completado por outras pessoas”, isto é, pressupõpe a participação, ou até a cumplicidade, do público em aceitar as premissas da peça. Foram realizados ao todo cinco trabalhos telepáticos, considerados entre as obras mais icônicas da arte conceitual e aqui expostos em sua versão de parede, que deveria constituir o envio de Barry para a 10a Bienal de São Paulo, deste mesmo ano. Trata-se daquela que ficaria conhecida como “Bienal do boicote”, por causa do enorme número de artistas já confirmados que, como o próprio Barry, decidiram retirar seus trabalhos da exposição em protesto contra a ação repressiva da ditadura militar, que, em 13 de dezembro de 1968, promulga o Ato Institucional no 5, inaugurando o período mais sombrio da recente história brasileira.
mario garcía torres
[México, 1975]What Happens in Halifax Stays in Halifax (In 36 Slides), 2004-2006
Slides 35 mm, transformado em projeção digital
11' 10''
Cortesia do artista
Em 1969, a convite de um dos professores do Nova Scotia College of Art and Design (NSCAD), em Halifax, no Canadá, Robert Barry enviou instruções para que um grupo de estudantes realizasse uma obra de arte conceitual. A única condição para a existência da obra era que ela fosse mantida em segredo pelos alunos: caso revelassem algo sobre ela para qualquer pessoa externa ao grupo (inclusive o próprio Barry), ela cessaria de existir.
Em 2004, Mario García Torres começa a investigar essa proposta e, em particular, o impacto da obra na vida das pessoas envolvidas. Agindo quase como um detetive, o artista localiza e contata os alunos, conversa com eles, e tenta obter informações sobre o segredo que, aparentemente, ainda não havia sido revelado.
ian wilson
[África do Sul, 1940]There was a discussion with Lawrence Weiner in New York City (walking up
6th Avenue to Kosuth’s place),1968
Papel datilografado e assinado
28 x 21,5 cm
coleção moraes-barbosa, São Paulo
Em 1968, Ian Wilson deixou de produzir obras físicas, organizando a partir desse momento seu trabalho como uma sequência de “comunicações orais”, entre as quais a série mais conhecida é a das “discussões”. Esses trabalhos consistem exclusivamente numa discussão e reflexão conjunta sobre temas filosóficos, mas que também afetam a vida de cada um, como o “tempo”, questão recorrente na prática de Wilson. As discussões não são gravadas, de maneira que elas só existem no momento de sua realização e, posteriormente, na memória dos participantes. O único rastro remanescente desses encontros consiste em uma declaração assinada pelo artista, que descreve sucintamente a discussão, mas sem revelar nada sobre ela. Neste caso, por exemplo, Wilson declara apenas que “Houve uma discussão com Lawrence Weiner em Nova York (caminhando pela 6a Avenida até a casa de Kosuth)”.
isidoro valcárcel medina
[Espanha, 1937]Madrid, 1973
Impressão offset em papel kraft
33 x 33 cm
Ao longo da uma trajetória de várias décadas, Isidoro Valcárcel Medina vem construindo um corpus de trabalho extremamente rigoroso, no qual com frequência arte e vida se fundem a ponto de se tornarem inseparáveis. Madrid é, ao mesmo tempo, uma descrição e uma negação de exposição: convidado para expor na galeria Seiquer, em Madri, Valcárcel
Medina optou por “repassar” o espaço e o tempo que lhe eram colocados à disposição ao público, para que realizasse ali qualquer “atividade ou proposta que lhe pareça oportuno realizar nas margens do âmbito da arte, ou que poderiam pertencer à arte”.
maria eichhorn
[Alemanha, 1962]5 weeks, 25 days, 175 hours
Documentação sobre a exposição
Chisenhale Gallery, Londres, Reino Unido, 2016
Cortesia da artista e da Chisenhale Gallery
Para a sua exposição 5 weeks, 25 days, 175 hours [5 semanas, 25 dias, 175 horas], Maria Eichhorn interrompeu o funcionamento da galeria Chisenhale, um espaço expositivo público, em Londres. Um dia antes da abertura, um simpósio foi organizado no local desprovido de obras, reunindo uma série de especialistas para discutirem as condições de trabalho atuais.
Em seguida, durante todo o período da mostra, que se estendeu de 24 de abril até 29 de maio, a galeria permaneceu fechada. Em 1969, Robert Barry já realizara, em três galerias distintas, um trabalho que consiste única e exclusivamente em deixar o espaço expositivo fechado, mas ao realizar sua proposta num espaço público, Eichhorn transforma radicalmente o significado desse gesto. De maneira silenciosa, porém poderosamente subversiva, a artista questiona a lógica capitalista quanto ao uso do tempo, é eficiência do trabalho e é busca de produtividade, ao encarregar a equipe da galeria de uma única tarefa: não trabalhar.
seth siegelaub
[Estados Unidos, 1941 – Suíça, 2013]Seleção de publicações
Galerista, curador, colecionador e pesquisador, Seth Siegelaub é reconhecido pelo seu papel na consolidação e disseminação da arte conceitual no final dos anos 1960. Seus projetos, frequentemente concebidos e levados adiante em estreita colaboração com artistas como Lawrence Weiner, Robert Barry e Douglas Huebler, entre outros, desafiavam e questionavam o papel de cada um dos agentes do sistema da arte, assim como os dispositivos, parâmetros e formatos expositivos convencionais. Siegelaub não considerava a presença (ou até a existência) física das obras como imprescindível: suas exposições podiam tomar a forma de um catálogo (como em January 5-31, 1969) ou reunir em um livro obras criadas em resposta a um convite/desafio do curador (como no caso do Xerox Book, 1968). Também elaborou, junto com o advogado Robert Projansky, o primeiro contrato que tenta regular a circulação das obras de arte após a sua primeira venda. O contrato constitui um documento de referência, no sentido de fortalecer o artista, em uma defesa de seus direitos econômicos e morais.
centro de arte y comunicación (cayc)
[Argentina, 1968-2012]Arte de Sistemas, 1971
lucy lippard
[Estados Unidos, 1937]955.000, 1970
Catálogo da exposição
Lucy Lippard é uma crítica, curadora e teórica, entre as primeiras a teorizar a desmaterialização do objeto de arte nos anos 1960. Um de seus projetos mais reconhecidos são os Numbers Shows, conjunto de exposições, realizadas em cidades diferentes, que reuniam artistas minimalistas e conceituais. Lidando com um orçamento extremamente baixo, Lippard optou por obras facilmente transportáveis ou produzidas in loco — em muitos casos, simples instruções que ela mesma seguiria para criar a obra, já que na maior parte dos casos os artistas não podiam estar presentes durante a montagem. O título de cada uma dessas exposições corresponde ao número de habitantes da cidade que a recebia, e o catálogo é constituído por fichas de arquivo com as instruções de montagem dos trabalhos. Depois de Seattle e Vancouver, Lucy Lippard realizou, em 1970, a exposição 2.972.453 em Buenos Aires, no Centro de Arte e Comunicação (CAyC). Criado em 1968, o centro reunia um grupo de artistas conceituais argentinos que gravitavam em torno do teórico Jorge Glusberg. Um ano após receber a exposição de Lippard, o CAyC organizou a mostra Arte de sistemas, que utilizava uma estratégia colaborativa análoga àquela proposta pela curadora americana.
nelson leirner
[Brasil, 1932]Material de arquivo
Cortesia do artista e da Biblioteca Mário de Andrade
As obras e propostas de Nelson Leirner sempre se destacaram por uma ironia contestatória que questiona o status da obra, o funcionamento do sistema da arte e, por extensão, a sociedade de consumo como um todo. O artista compartilhava essas inquietações, entre outros, com Wesley Duke Lee e Geraldo de Barros, junto com os quais fundou o Grupo Rex, em 1966.
O mote “Aviso: é a guerra” abria o editorial do primeiro número do periódico do grupo, o Rex Time, dando o tom às ações que o grupo levaria a cabo na Rex Gallery & Sons. Foi o caso, por exemplo, da Exposição Não-exposição, último evento da galeria, na qual Leirner deixou o público retirar das paredes e levar gratuitamente as obras, rompendo não somente com os códigos convencionais de um espaço expositivo, como também com os protocolos de compra e venda de uma obra de arte. Outra das propostas mais ousadas de Leirner ficou conhecida como happening da crítica. Após ter sido selecionado para o IV Salão de arte Moderna de Brasília, em 1967, com um porco empalhado e enjaulado, o artista questionou essa escolha e interpelou os membros do júri, que responderam à provocação do artista em diferentes artigos no jornal.
joseph beuys
[Alemanha, 1921-1986]I like America and America likes me, 1974
Video de performance de Joseph Beuys
37' 10''
Helmut Wietz (diretor)
Cortesia Common Film Produktion, Berlim, Alemania
O vídeo da mítica performance de Joseph Beuys, I Like America and America likes me (1974), é um contraponto poético a muitos dos trabalhos reunidos na exposição. Beuys permaneceu oito horas por dia, ao longo de três dias seguidos, em companhia de um coiote, numa jaula improvisada na Ren. Block Gallery, em Nova York. O chão da galeria, coberto por cópias do Wall Street Journal, foi o único dos Estados Unidos onde o artista pisou: ele ficou no país apenas o tempo da performance, e tanto na ida quanto na volta para o aeroporto foi levado numa ambul.ncia, envolto num cobertor de feltro. Na simbologia xamânica de Beuys, o coiote representa a natureza virgem da América, reverenciada pelos nativos e quase extinta pelos colonizadores, cujo culto do militarismo, ao qual Beuys opunha-se ativamente, manifestava-se nesse período na guerra do Vietnã. E de fato, para além da coreografia do artista e do coiote (extremamente relevante numa exposição onde o assunto são acordos e trocas), o título situa a ação num contexto político que a sutil ironia não torna menos polêmico.
Trasladada ao âmbito latino-americano, a frase Eu gosto da América e a América gosta de mim, que Joseph Beuys cunhara para a única obra por ele realizada nos Estados Unidos, torna-se ambígua, principalmente se lida na ótica da chamada "Política da boa vizinhança" (1933-1945), que buscava apresentar os Estados Unidos como uma espécie de primo rico, simpático, bem-sucedido, que zelava pelos seus vizinhos do sul.
No âmbito dessa política, um lugar privilegiado coube à diplomacia cultural, que ativamente contribuía a fazer circular a obra de artistas como Alexander Calder, considerada exemplar para a difusão dos valores norte-americanos.
Além da doação e exposição de obras, era parte integrante dessa política a implantação de Museus de Arte Moderna pela América Latina, frequentemente aventando a possibilidade, que quase nunca se concretizaria, de exposições de artistas latinos no MoMA ou outros museus norte-americanos.
Décadas mais tarde, em 2010, o próprio MoMA recusaria o pedido de empréstimo das pinturas da série October 18, 1977, de Gerhard Richter para a 29a Bienal de São Paulo, levando os curadores a pedir para que a artista Sandra Gamarra as replicasse, como parte da coleção do LiMac — o museu fictício, e intensamente pós-colonialista, fundado
por ela. A etapa seguinte desse interminável jogo de poder, admiração e desejo de emulação, seria a designação de um dos curadores do MoMA para organizar a 30a edição da Bienal.
alexander calder
[Estados Unidos, 1898-1976]Correspondências, publicações, fotos e recortes de e sobre Alexander Calder, produzidos entre 1948 e 1972. coleção moraes-barbosa, São Paulo e cortesia da Biblioteca Mário de Andrade
Já internacionalmente reconhecido, principalmente por suas esculturas móveis, Alexander Calder visita o Brasil pela primeira vez em 1948, para preparar uma exposição no então Ministério da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro. A partir desse momento, o artista americano voltaria muitas vezes ao país, estabelecendo relações duradouras com diversos intelectuais, como o crítico Mário Pedrosa e o arquiteto Henrique Mindlin. Entre as pessoas com quem Calder desenvolve uma relação de amizade mais íntima estão a escritora americana Mary Morse e sua companheira Lota de Macedo Soares, arquiteta e paisagista carioca, que foi uma das responsáveis pela reconfiguração do aterro do Flamengo. Nesse papel, Lota de Macedo Soares contribuiria para a aquisição e instalação no local de duas esculturas do artista, posteriormente roubadas, em 1985. Ao lado de documentos, fotos e recortes de jornal, a correspondência selecionada aborda aspectos práticos como o transporte ou a negociação de suas obras, desenhando um episódio complexo, que precisa ser contextualizado para além da história da arte brasileira, contra o pano de fundo da estratégia política norte-americana do período em relação à América Latina.
alessandro balteo-yazbeck
[Venezuela, 1972]RSVP, 1939, 2007-09
(da série Cultural Diplomacy: An Art We Neglect) Impressão C-print; capa da revista Time magazine (22 de Maio de 1939); vinil recortado na parede e placa com texto
90 x 120 cm
Cortesia do artista
Em 1939, Frances Collins, responsável pelo setor de publicações do MoMA de Nova York, elaborou um convite fictício para o evento de abertura do “novo museu da Standard Oil”, para evidenciar como a atuação do museu era pautada por interesses econômicos e políticos — mais especificamente, aqueles ligados à distribuição e exploração do petróleo. No mesmo ano, Nelson Rockefeller foi eleito presidente do MoMA, e impulsionou uma série de mostras pela América Latina que, muito além do seu caráter cultural, integravam a estratégia de penetração norte-americana no continente, conhecida como a “Política de boa vizinhança" dos governos de Franklin D. Roosevelt (1933-45). RSVP, 1939 evidencia os interesses econômicos, estratégicos e políticos da diplomacia cultural, ao justapor o convite fictício do MoMA com declarações de alguns dos personagens principais da trama, que encontram um eco, na exposição, nas correspondências de Alexander Calder, artista profundamente estudado por Balteo-Yazbeck exatamente pelo papel de sua obra na estratégia cultural do expansionismo cultural norte-americano.
hans haacke
[Alemanha, 1936]Hans Haacke — Works 1970-78
Cartaz da exposição
Museum of Modern Art, Oxford, Reino Unido, 1978
“O prazer que a arte me dá é estético ao invés de intelectual.
Não estou preocupado com o que o artista quer dizer; não é uma
operação intelectual — é o que eu sinto.”
— NELSON ROCKEFELLER
Não estou preocupado com o que o artista quer dizer; não é uma
operação intelectual — é o que eu sinto.”
— NELSON ROCKEFELLER
Hans Haacke é um artista imprescindível em qualquer discussão sobre as normas, os acordos e as conspirações entre os diversos agentes do sistema da arte, e principalmente sobre a maneira como interesses externos influenciam o funcionamento desse sistema. Um dos pioneiros da chamada "crítica institucional”, Haacke tem sido uma referência para gerações de artistas, ao explicitar de maneira ao mesmo tempo simbólica e direta os vínculos intrincados, e muitas vezes ocultos, entre arte, política e finanças. No contexto de seu trabalho e de seus escritos, é especialmente relevante a investigação sobre o funcionamento de grandes museus americanos, como o MoMA de Nova York. O interesse do artista por Nelson Rockefeller surge exatamente do fato do empresário ter sido membro do conselho da instituição ao longo de décadas, e presidente dela em diversos mandatos (1939-1941; 1946-1953). Significativamente, a frase citada por Haacke parece descrever um tipo de trabalho absolutamente oposto ao do artista alemão, no qual as questões estéticas não podem ser nunca desvinculadas de um discurso ético e de uma reflexão sobre o funcionamento da sociedade.
sandra gamarra
[Peru, 1972]October P.g. 20b, 2010
Óleo sobre tela
87 x 102 cm
Cortesia da artista e Galeria Leme, São Paulo
Em 2002, Sandra Gamarra fundou o LiMac, um museu fictício ou “projeto de museu”, como ela o define, para a cidade de Lima, que neste momento não contava com nenhum espaço para a produção contemporânea. Para o museu confluem muitas das suas pinturas, que frequentemente reproduzem obras de mestres da arte moderna e contemporânea, como uma maneira de preencher o vazio criado pela ausência de instituições culturais ativas no Peru (e na América Latina, de uma maneira mais geral). A pintura aqui incluída é parte do conjunto que reproduz as célebres telas da série October 18, 1977, do pintor alemão Gerhard Richter, que, por sua vez, replicam imagens de imprensa e registros policiais dos membros do grupo terrorista de extrema-esquerda Baader-Meinhof, ativos na Alemanha Ocidental a partir do final dos anos 1960, presos em 1972 e mortos em circunstâncias nunca plenamente esclarecidas na prisão de Stammheim.
ARTISTAS: Alessandro Balteo-Yazbeck, Alexander Calder, A lfredo Jaar, A ndré Cadere, Cameron Rowland, C entro de Arte y Comunicación (cayc), D arren Bader, G uerrilla Girls, H ans Haacke, I an Wilson, Isidoro Valcárcel Medina, J oseph Beuys, L ucy Lippard, M aria Eichhorn, M aria Loboda, Mario García Torres, M ark Lombardi, N elson Leirner, P hilippe Thomas, R obert Barry, S andra Gamarra, S eth Siegelaub