Em Xeque


Curadoria: Olivia Ardui



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Jogos de tabuleiro reúnem dois ou mais participantes que progridem em uma superfície plana e marcada segundo regras bem específicas. Apesar do seu evidente aspecto lúdico, esses jogos funcionam como cenários onde se desdobram táticas a fim de vencer a partida. Essa dimensão belicosa e estratégica justifica uma leitura simbólica desses jogos, como representação analógica da sociedade.

Um dos jogos de tabuleiro no qual essa analogia é mais nítida, é o jogo de xadrez, que efetivamente foi dotado, quando introduzido na Europa por volta do século X, de regras que se espelharam nas relações de poder e os códigos que regiam a sociedade feudal. Apesar do extenso intervalo histórico que nos separa da sociedade medieval, a metáfora do jogo de xadrez ainda é pertinente para abordar as conjunturas sociopolíticas atuais. Efetivamente, o princípio do jogo pode ser compreendido como alusão à dinâmica de um mundo globalizado que funciona como um tabuleiro gigante onde se desenrolam disputas mais ou menos explícitas por posições estratégicas, recursos naturais ou zonas de influência. A exposição Em Xeque reúne obras – na maioria provenientes do acervo Moraes-Barbosa– que analisam e criticam as regras do jogo subjacentes na contemporaneidade e que as põem em xeque.




A expressão “pôr em xeque” remete ao xeque-mate, disposição de jogo na qual o rei de um jogador está sendo ameaçado por uma peça do adversário e se encontra praticamente ou totalmente sem saída, por não poder se mover para alguma ou nenhuma outra casa. Essa configuração culmina toda tensão e suspense do jogo, anunciando o fim da partida. Desde então, pôr algo em xeque significa colocá-lo numa situação crítica, de impasse, que parece não apresentar uma solução ou uma saída. Por extensão, pôr algo em xeque consiste ainda em duvidar da sua pertinência, do seu valor e da sua importância. Essa segunda acepção da expressão, mais do que um perigo ou uma ameaça efetiva, refere-se mais a uma ameaça à predominância e à integridade de instituições, de princípios e ideias estabelecidas, sendo assim da ordem do ceticismo, da subversão, da desobediência.



Uma primeira série de obras questionam ideologias ou uma concepção oficial da história, e isso, mediante uma estratégia comum de intervenção ou até perversão de monumentos, veículos de uma narrativa dominante difundida. Estruturas erguidas para comemorar feitos notáveis e figuras públicas são assim manejados por Iman Issa e Amalia Pica, transformando simultaneamente a compreensão desse patrimônio histórico. Em outras obras, a noção de monumento é de ordem mais figurativa, referindo-se a um sistema filosófico e socioeconômico predominante, como a referência à administração financeira na obra de Clara Ianni, ou ainda um autor incontornável, como Karl Marx na obra de Carlos Garaicoa. Nos dois primeiros casos, os artistas contradizem esses monumentos pela justaposição de elementos paradoxais, respectivamente, uma enxada e uma bolsa da Louis Vuitton. Guilherme Peters também recorre a efígies de personagens históricos, no caso Roosevelt, Lenine e Hitler, para confrontá-las com seu próprio retrato, numa tentativa de questionar a sua posição em relação a história. Assim, apesar da contestação e crítica, como as colagens de Eva Kotatkova evocam, os indivíduos ainda estão extensivamente sujeitos a essas ideologias e a esses valores, que funcionam como os cordéis invisíveis de marionetes.



A vontade de desfazer-se de laços inelutáveis e de situações constrangedoras estrutura um segundo núcleo conceitual que ressalta como o instinto de sobrevivência leva indivíduos a elaborarem estratégias desesperadas para escapar do momento fatídico da morte. O artifício mais representativo dessa aspiração se cristaliza em torno de uma pretensão de interromper o decorrer do tempo, e que é declinado nos trabalhos de Cinthia Marcelle, Nicolás Bacal, Theo Craveiro, Rivane Neuenschwander, Mario Garcia Torres. Outra vertente dessa resistência consiste em uma atitude de fuga logo que a integridade física e moral dos indivíduos é posta em xeque, seja devido a uma guerra civil como na obra de Rayyane Tabet, a um conflito político como no caso de Mona Hatoum, ou ainda no fenômeno de imigração, evocado nos desenhos de Paulo Nazareth.



Essas situações de impasse são geralmente ocasionadas por fatores externos subordinados a questões que ultrapassam a escala humana já que se situam em um plano internacional. Um último conjunto de obras da exposição aborda essas questões de geopolítica, e em particular a geopolítica do petróleo que modificou profundamente a história das regiões ricas desse recurso natural. Sendo uma das principais fontes de energia, e a matéria-prima para fabricação de muitos produtos derivados, como o plástico, a posse desse recurso natural é estratégica e fundamental. Desde então, a presença de petróleo justificou, de forma declarada ou não, conflitos e quedas de regimes no Oriente Médio como o evocam Rayyane Tabet, Alessandro Balteo Yazbeck ou ainda Roberto Winter, assim como evacuações de populações nos Estados Unidos como o aponta Jimmie Durham.

Se regras do jogo irão sempre existir, com todas as relações de poder e os interesses latentes que isso implica, as obras presentes na exposição Em Xeque instigam nossa reflexão e nos fazem adotar uma distância crítica em relação a esse modelo. E dessa forma elas talvez consigam incitar a mudança de uma atitude submissa, semelhando as marionetes, para uma posição ativa, tal como a do jogador de xadrez.

Dando continuidade a uma iniciativa de promoção de projetos artísticos experimentais, Pedro Barbosa disponibiliza mais uma vez o espaço de seu apartamento para a realização de exposições que acontecem em paralelo a eventos chaves que ritmam a programação cultural de São Paulo. O contexto da SP Arte - principal feira de arte da cidade que é representativa da internacionalização do mercado da arte brasileira - é uma ocasião oportuna para mostrar o desenvolvimento recente da coleção moraes-barbosa, que também vem ultrapassando as fronteiras pela aquisição de obras de artistas emergentes na cena artística internacional. Mais especificamente, essa nova orientação, como ilustra essa exposição, assume um coerente conjunto de obras com um forte teor de engajamento e um questionamento crítico quanto às configurações econômicas, sociais e políticas em jogo no mundo contemporâneo.

Artistas: 

Nicolás Bacal
Alessandro Balteo Yazbeck
Marcelo Cidade
Theo Craveiro
Jimmie Durham
Carlos Garaicoa
Mario García Torres
Mona Hatoum
Clara Ianni
Iman Issa
Eva Kotatkova
Cinthia Marcelle
Paulo Nazareth
Rivane Neuenschwander
Fernando Ortega
Guilherme Peters
Amalia Pica
Rayyane Tabet
Roberto Winter