Geometrias


Curadoria: Paulo Miyada




No ensino fundamental, as escolas nos falam da geometria como um campo estável, repleto de axiomas e teoremas confiáveis que, se bem manipulados, permitem traduzir em cálculos algébricos as investigações sobre as figuras que podem ocupar o espaço. Baseada em relações de proporção, a geometria é uma ferramenta eficaz para processar problemas de natureza diversa, desde a definição das medidas de um objeto de escala diminuta até previsões do comportamento físico das coisas, partindo de informações vetoriais como velocidade e atrito. A geometria colabora, inclusive, para lidar com os abstratos cálculos que envolvem gráficos para abarcar as noções de limite, derivada e integral. O que se perde no elogio à eficácia da geometria, entretanto, é o entendimento de que sua formulação foi e sempre será circunstanciada pela história do pensamento humano, ao longo da qual suas premissas ganharam e perderam credibilidade. Ainda mais importante, a vista grossa a esse desenvolvimento histórico apaga rastros que indicam o impacto que tal ou qual instrumental geométrico impingiu sobre o pensamento e o modo como o homem distribui, mede e organiza o mundo e o conhecimento que produz a partir dele.

Convém lembrar, a fim de ilustração, que muito embora existam antiquíssimas representações aproximadas de poliedros simples, que estimamos terem sido feitas cerca de dois mil anos antes de Cristo, apenas no século XIX foram formuladas teorias matemáticas que permitiam a representação de formas tridimensionais mais complexas. Nunca antes do advento da Geometria Descritiva fora possível prever com tamanha precisão as consequências de tal ou qual posicionamento dos canhões em um campo de batalha e, portanto, não é de se espantar que essa elaboração do matemático Gaspard Monge tenha sido tratada como segredo de Estado de interesse militar por mais de uma década na época da Revolução Francesa. Poderíamos desfiar uma possível genealogia da geometria como máquina de guerra, que se entrecruzaria com aquela da geometria como recurso cartográfico. Pois talvez seja em torno dos limites da representação do planeta e do universo em que vivemos que a humanidade tenha encontrado motivo para alguns dos debates mais acalorados em torno da geometria: da projeção cilíndrica de Mercator, passando pelo teorema de Carl Friedrich Gauss – que
demonstra que uma esfera não pode ser representada em um plano sem distorção –, até os estudos de Bernhard Riemann, que escaparam dos limites da geometria Euclidiana para indicar caminhos que seriam trilhados por Albert Einstein na formulação de sua teoria da relatividade.

O que dizer então das formulações que teorizam a existência de muitas dimensões além das três ou quatro que utilizamos cotidianamente para medir o espaço e o tempo? Diminutas e imperceptíveis para o homem e para a maior parte de seus instrumentos de análise, tais dimensões podem ser a chave para um entendimento integral das forças naturais e do modo como matéria e energia interagem – diante delas, o que o senso comum reconhece como universo não passa de um modelo plano, achatado. Ou, ainda, como medir as variáveis ao conceber o impacto da inserção de noções de curvatura em entendimentos cosmológicos? Nesse campo, optar por modelos fechados, esféricos, ou abertos, pseudo-esféricos, pode indicar, por analogia geométrica, o destino último do universo, seja rumo à compressão total da matéria ou à dissolução da matéria em um vazio estéril.

Pois bem, convém que por vezes caiba aos artistas revisitar os paradigmas e as passagens centrais dessa história, enfatizando modelos que carregam em si esquemas de pensamento e concepções do universo – H. G. Wells e Marcel Duchamp, por exemplo, eram aficionados por noções em torno da quarta dimensão e por teorias de geometria não-Euclidiana, a qual, por sua vez, aparecia para os surrealistas como símbolo de uma nova liberdade da tirania das leis estabelecidas . É notável que em muitos casos a pesquisa artística e o estudo cientí!cogeométrico se encontrem em dois pontos de interseção, na concepção de modelos e na elaboração de mapas – duas atividades eficazes tanto como artifícios que dão corpo a ideias concebidas em abstrato quanto como recursos que tornam visíveis aspectos que não poderiam ser inferidos pelo simples acúmulo de cálculos.



A possibilidade de gerar modelos e mapas empodera a geometria em meio a campos de conhecimento que lidam com ideias abstratas e/ou que escapam à capacidade de visualização do homem sobre aspectos do espaço e do tempo que habita. Essa mesma possibilidade faz da geometria um lugar de disputa central para a formulação da arte das vanguardas e, depois, para os elaborados esquemas concebidos por um artista como Sol LeWitt. E é, ainda, por essa possibilidade que a exposição Geometrias se tornou possível: um recorte de uma coleção de arte que formou-se tendo como foco trabalhos que lidam com o repertório da arte geométrica ao mesmo tempo em que formulam aproximações críticas ao mundo contemporâneo e suas instituições e forças abstratas. Estão reunidas obras de artistas de variadas gerações e lugares de origens, conformando modelos que se valem da geometria – de simples figuras que habitam o plano cartesiano até formas complexas da geometria esférica – para corporificar ideias de outra forma vagas e/ou tornar visíveis estruturas que transbordam os limites do discurso verbal.

No contexto brasileiro, é particularmente bem-vinda uma abordagem que implique a geometria na articulação de modelos e mapas operacionais na percepção, entendimento e disputa sobre a realidade. Ao menos de acordo com o modelo sugerido pela narrativa mestra da arte brasileira, é atordoante a velocidade com que as experimentações em torno da abstração geométrica foram introduzidas, questionadas, aderidas, consolidadas e, digamos, superadas, em um arco que vai das reflexões de Mário Pedrosa acerca da arte internacional até as experiências Neoconcretas em menos de duas décadas. Apenas no princípio da década de 1950 (e, portanto, tardiamente) essa pauta encontrou seus heróis em figuras como Waldemar Cordeiro, Amilcar de Castro e Ivan Serpa, que de maneiras distintas, delinearam programas de ação que importavam à arte o caráter positivo do raciocínio geométrico... e, antes mesmo que a década seguinte terminasse, Lygia Pape, Lygia Clark e Hélio Oiticica já haviam experimentado as possibilidades da presença de elementos da arte abstrata como cor, forma e linha no mesmo espaço que o corpo do público e daí estipulado as bases do que pode ser chamado de arte ambiental, na qual a geometria perde seu papel proeminente em prol das decisões, percepções e sínteses do espectador/participador.

O problema dessa narrativa, baseada no percurso de um artista como Hélio Oiticica – cujo primeiro conjunto de obras de valor reconhecido é de pinturas geométricas chamadas Metaesquemas – é que ela sugere que o Neoconcretismo parte das variáveis da abstração geométrica e então as “resolve” e “supera” – em experiências como os Parangolés e os Penetráveis. Na cegueira que todo modelo narrativo implica, ficamos sem outras alternativas de engajamento e resolução do embate que foi pauta recorrente em diversas partes do bloco ocidental após a Segunda Guerra, quando as vanguardas construtivas se tornaram simultaneamente linguagem oficial promovida pelas políticas culturais norte-americanas e figura paterna a ser destruída. Assim, há na história brasileira uma carência por figuras como Eva Hesse, Blinky Palermo, Imi Knoebel, Franz Erhard Walther e Gego, para citar alguns artistas que promoveram uma relação de flerte e dessacralização do legado da arte construtiva. Ao invés de “superar” a geometria, esses artistas a liberaram de uma parcela de positivismo racional e científico, afrouxando seus pressupostos ideológicos e essencialistas a um só tempo. Sem esses marcadores, a geometria pôde oferecer-se para outros fins, como espelhar arranjos preexistentes nos objetos cotidianos, por exemplo.

A exposição Geometrias organiza, no espaço restrito de um apartamento, um panorama que cruza artistas contemporâneos brasileiros e internacionais que não resolvem diretamente os impasses da abstração geométrica legada pelas vanguardas construtivas, mas sim que liberam a geometria de sua narrativa interna à história da arte moderna e aprofundam vínculos com outras possibilidades da articulação da geometria no mundo atual. Tomemos como exemplares as obras de Gabriel Sierra, Jorge Macchi, Cristiano Lenhardt e Roberto Winter, que foram expostas no primeiro ambiente do apartamento, imbricadas visual e espacialmente. Todas são obras estruturadas por formas simples da geometria Euclidiana, como um cubo, uma pirâmide e um conjunto de circunferências. Os planos ortogonais de Gabriel Sierra é o trabalho que está mais próximo da referência às vanguardas construtivas, por formalizar de maneira bem-humorada uma conhecida tensão dialética entre geometria e organicidade, aqui representada pelo jogo entre planos precariamente ortogononais e uma maçã suspensos no espaço. A Pirâmide-Canto de Cristiano Lenhardt e as circunferências de Jorge Macchi ecoam esse princípio, mas sublinham o entendimento da forma geométrica como possível síntese de um gesto de marcação do espaço e suas qualidades – a gravura dobrada em três planos dá materialidade ao nó górgio do espaço arquitetónico ordinário, a intersecção entre planos verticais e plano horizontal; enquanto os lápis dobrados sobre si mesmos e rotacionados para desenharem circunferências dramatizam a tensão entre a planaridade da representação geométrica e a materialidade do dispositivo que a constrói. Já Autonomia, de Roberto Winter, faz do cubo um modelo para a demonstração da incompletude da percepção puramente visual e do papel da memória e do raciocínio para a construção de entendimentos – a peça de acrílico colorido translúcido guarda dentro de si um X gráfico impresso que não pode ser lido de nenhum ponto de vista, já que uma parcela de si sempre se esconde pelo jogo ótico entre as cores dos pedaços do X e as cores dos acrílicos das faces do cubo. Por fim, o mapa de Jorge Macchi reúne uma série de fragmentos de reta em uma retícula ortogonal com alturas variadas, sugerindo a estrutura de um papel desdobrado, que pode lembrar um mapa aberto sobre a mesa. Em cada uma dessas obras, que se apresentam logo que o visitante entra na exposição, a coesão e simplicidade universal das figuras e volumes geométricos se prestam à elaboração de corpos de prova para equações entre duas ou mais variáveis do espaço expositivo ou de modelos para a visualização de ideias anteriormente formuladas. Em todos os casos, a facilidade da mente humana em conceber e apreender essas formas é tomada como condição para a convergência entre os modelos e sua percepção.

Na outra ponta da exposição, encontram-se imbricados os trabalhos de Damian Ortega, Tomás Saraceno e Cinthia Marcelle. Ao estudar casos da geometria não-Euclidiana, Pedro Barbosa reconheceu em obras de sua coleção formas que bem poderiam ser modelos tridimensionais de um knotted torus, uma pseudo-esfera e um meridiano norte-sul nas obras desses três artistas. Supõe-se que as intenções poéticas desses trabalhos não se resumem a comentários específicos acerca das descobertas de modelos geométricos e, no entanto, a identidade de suas formas com esses modelos revela algo de sua estrutura formal. Numa época já há décadas lida na chave da fragmentação, simultaneidade e simulacro, a adoção de morfologias equivalentes às descobertas da geometria não-Euclidiana pode ser lida como uma espécie de reiteração do elogio da complexidade recorrente nos discursos de diversos pensadores do contemporâneo. Mais do que ataque à ciência positivista, como fora o caso do interesse dos artistas modernos, a adoção dessas formas por artistas contemporâneos parece sugerir a necessidade de estabelecer modelos de leitura mais lenta, incompatível com a agilidade de compreensão típica das formas e volumes euclidianos. Assim, preserva-se a unidade e coesão do modelo presente no primeiro grupo de trabalhos da exposição, mas retarda-se a associação nominal que é tão rápida quando vemos um cubo, uma esfera ou um círculo.

Cruzando essas duas abordagens da geometria como instrumento de realização de formas-modelos, estão posicionadas diversas cartografias elaboradas por artistas. Como mencionado antes, a elaboração de mapas e a definição de fronteiras representa uma das vias que fazem da geometria um instrumento de poder aplicado sobre o mundo. As iniciativas reunidas na exposição exploram essa articulação. A começar pelo já mencionado mapa de Jorge Machi, que sintetiza a morfologia do mapa a seu esqueleto reticulado sugerido pelas dobras do papel, ao mesmo tempo em que sugere uma alegoria da urbanização feita pelo imperialismo espanhol na América Latina, a qual impôs sistemática e repetidamente o modelo da retícula ortogonal como matriz para as cidades que estabeleceu nas colônias americanas. Menos sutil em suas sugestões, o mapa promovido por Rosangela Rennó da capital do Chipre, Nicosia, foi realizado através da solicitação para que pessoas de diferentes grupos étnicos e políticos do país demarcassem as fronteiras urbanas sobre uma vista aérea da cidade – a oscilação e dissonância das linhas sobrepostas marca o modo como as disputas por território e soberania contaminam uma tarefa supostamente objetiva de mapeamento. Entre esses dois casos, o Recenseamento moral da cidade do Recife, de Jonathas de Andrade, espacializa um mapa a partir das páginas de um guia de ruas e nele marca uma série de endereços de onde saem linhas que se empilham horizontalmente, cada uma levando a um questionário sobre bons costumes, o qual foi reproduzido de um livro de boas maneiras de 1980 e aplicado pelo artista com moradores de diversos bairros visitados em 2008. O conteúdo latente desse mapeamento extravasa
os dados sócio-econômicos e espaciais tão usuais em mapeamentos base de estudos de planejamento urbano, já que agrupa opiniões, preceitos e preconceitos particulares.

Ainda assim, as reações privadas às perguntas apropriadas pelo artista acabam sugerem uma cartografia espacial e, sobretudo, temporal da cidade, dando elementos para a conformação de um panorama do estado da vida política – na acepção primeira do termo, vida da e na pólis – frente às desigualdades e transitoriedades da cidade de Recife.


1. As aproximações citadas neste parágrafo são devidas ao estudo perspicaz da pesquisadora da Divisão de Ciências Naturais e Matemática da Lesley University, Angela Vierling-Claassen, responsável pelo artigo "Models of Surfaces and Abstract Art in the Early 20th Century", e que, por sua vez, consultou Linda Henderson. "The Fourth Dimension and Non-Euclidean Geometry in Modern Art". Princeton University Press, 1983.

ARTISTAS: Ana Dias Batista, André Komatsu, Camila Sposati, Carla Chaim, Cinthia Marcelle, Cristiano Lenhardt,  Damián Ortega, Deyson Gilbert, Gabriel Orozco, Gabriel Sierra, Giovanni Ozzola, Gisela Motta, Jonathas de Andrade, Jorge Macchi, José Damasceno, Lawrence Weiner, Leandro Lima, Lia Chaia, Marcelo Cidade, Marcius Galan, Marila Dardot,  Mateo Lopez, Mona Hatoum, Nicolás Robbio, Paulo Nazareth, Reginaldo Pereira, Rivane Neuenschwander, Robert Winter, Rodrigo Matheus, Rosângela Rennó, Tomás Saraceno