TERRA-PALAVRAS


org. Antônio Ewbank e Wallace V. Masuko



[versão em inglês]

abertura da exposição e lançamento de
ROBERT SMITHSON: ARTFORUM 1966-73

6 de maio de 2023, 11h às 19h


A publicação foi feita com o apoio da Holt/Smithson Foundation e da cmb
A compra da publicação pode ser feita na exposição, ou pela
Editora Ébria


visitação 06.05 - 05.08.23
quarta a sexta, das 13h às 19h
sábados das 11h às 19h

entrada gratuita


travessa dona paula, 120
são paulo - sp
      



TERRA-PALAVRAS


Há cinquenta ou sessenta anos os leitores de Robert Smithson não eram tão numerosos. Tampouco, as leituras de sua obra pelo mundo afora. Quando comecei a traduzir seus escritos, como quem busca “o verdadeiro modo de ler um texto”, queria me afastar da vertigem dos números. Hoje, pelo simples fato de serem tantas as interpretações disponíveis, faz sentido duvidarmos que se possa acrescentar à sua obra novas camadas de entendimento. Mas essa dúvida abstrata, como indica o próprio artista, persiste apenas se ignorarmos o cunho material de sua linguagem escultórica. Smithson afirma que a escrita deve gerar ideias na matéria, e não o contrário. Por essa razão, a tradução aqui apresentada sugere ela mesma o uso de uma palavra justa – “matéria-impressa”. É um pouco desconcertante perceber que sua linguagem não é propriamente feita de ideias. Também ela consta de vários objetos e ações, de analogias e imagens espelhadas. As propriedades físicas da linguagem e dos materiais raramente são expressas de modo discreto. Talvez devêssemos levar a sério suas palavras, lidar com o peso e as dimensões de cada sentença. Assim, não custa nada imaginarmos tal processo (gráfico) de multiplicação da matéria-impressa no espaço e no tempo: montes de línguas ou pilhas de linguagem literalmente se acumulando no labirinto de corredores e prateleiras de uma infindável biblioteca de Babel. Este volume decerto ficaria bem guardado, dentro do universo de Borges, naquela região agreste onde se repudia o supersticioso e vão costume de procurar sentido nos livros. Os livros nada significam em si mesmos.

É provável que Smithson seja mais conhecido como o autor do Spiral Jetty: um molhe espiral feito de terra e rochas basálticas, que se desenrola em sentido anti-horário do centro à margem de um lago salgado. Ainda que inacessível ao grande público, a obra logo se transformou em um ícone da produção tridimensional de sua época, por meio de imagens técnicas, representações gráficas e relatos textuais. O observador mais desatento, porém, não se dá conta de que esse braço monumental faz parte de um corpo maior e multifacetado. Fora o molhe construído em 1970, Spiral Jetty se desdobra em um filme homônimo e coetâneo, um conjunto de desenhos preparatórios e uma matéria-impressa, The Spiral Jetty, publicada dois anos depois. Cabe lembrar também da construção, dois anos antes, de uma escultura em espiral triangulada, Gyrostasis, a qual o artista se refere como “um mapa tridimensional abstrato que aponta para o Spiral Jetty”. Essas traduções em diferentes meios e suportes, longe de apenas documentarem o molhe pouco acessível, compõem um todo complexo, antecipam e complementam a obra. Nos termos do artista, a dialética entre sítio (molhe espiral) e não-sítio (filme + desenhos + matéria-impressa + escultura) estabelece uma rede concreta de inter-relações.

Existe uma construção em espiral, feita de matéria autóctone, localizada no Grande Lago Salgado, estado de Utah, que dialoga com: 1. um filme rodado em película e reproduzido indefinidamente em museus e galerias de arte; 2. desenhos de caráter projetual, incluindo o tratamento para esse mesmo filme, utilizado no cartaz que anunciava sua primeira exibição na Galeria Dwan; 3. uma matéria-impressa, publicada em Arts of Environment, que ainda circula em livros e revistas de arte, inclusive traduzida em outros idiomas; 4. uma escultura de aço branca, que pertence à coleção do Hirshhorn Museum and Sculpture Garden. Essa disposição dos elementos conforma as dobras espaço-temporais do políptico. Podemos representar a relação na forma de um diagrama, contendo um ponto fixo (sítio) e inúmeras coordenadas móveis (não-sítios), separados por distâncias e intervalos variáveis. Convém situar o diagrama em um mapa-múndi ou globo terrestre. O que importa é tornar visível a dinâmica dos corpos em escala. Assim como a fumaça está para o fogo, a sombra para o edifício, a biruta para o vento – um mapa sempre aponta para algum sítio. Do mesmo modo, o leitor de agora, que tem em mãos este não-sítio de papel, traça uma série de linhas imaginárias que o conectam (talvez sem querer) ao terminal aéreo de Dallas-Fort Worth, a Passaic, a Iucatã, à Mina de Sal-Gema Cayuga, ao Central Park. É curioso notar que essa relação nem sempre é de ordem cronológica: ora os mapas apontam para ruínas históricas, ora para ruínas em reverso: apontam para aeroportos em construção, subúrbios industriais, sítios arqueológicos, minas e parques. Em poucas palavras, todo não-sítio é índice de um sítio específico.

Cada linguagem, meio ou suporte se dispõe a ativar os demais. Smithson institui uma espécie de livre trânsito entre o verbal e o visual, evidente na construção Language to be Looked at and/or Things to be Read [Linguagem para ser Vista e/ou Coisa para ser Lida], que aparece no release de uma exposição coletiva de mesmo nome, realizada na Galeria Dwan em 1967. A construção inverte a lógica dos sentidos ao enfatizar tanto o cunho material das palavras quanto a possibilidade de interpretarmos os objetos em geral. Pode parecer uma constatação banal, mas toda matéria-impressa é uma amálgama de ideia e objeto. Basta reconhecer que os exemplos anteriores revelam uma organização interna das obras, de acordo com um léxico próprio (o par de conceitos sítio/não-sítio), e que essa organização corresponde a locais, objetos e ações reais. Isso quer dizer que essas obras não devem ser julgadas isoladamente, e sim combinadas umas com as outras, segundo uma ordem conceitual e material. Além do mais, elas demarcam e conectam o dentro e o fora dos espaços institucionais de arte: o espaço dos museus, das galerias e, no caso específico, das revistas de arte. Em tal contexto, o espaço editorial das publicações excede sua condição de mero veículo para a circulação de ideias e documentação de obras. Também ele se torna um veículo para obras de arte, algumas de caráter ambíguo e de difícil classificação, um material incontornável para a assimilação da linguagem escultórica do artista.

As intervenções em diferentes revistas de arte norte-americanas, antes de mais nada, marcam uma presença estranha. A intenção do autor, ao confrontar a produção crítica e historiográfica, era acrescentar matéria-impressa a um regime de circulação e funcionamento próprio de determinadas formas discursivas. Estava em jogo a última palavra a respeito das obras de arte ou, talvez, uma redefinição dos limites entre arte e crítica. É digno de nota observar que, embora suas publicações fossem esparsas (Arts Magazine, Harper’s Bazaar, Aspen, entre outras), um terço dessa produção se concentra em uma única revista. Aqui o leitor encontrará uma dezena de matérias-impressas em edição fac-similar, publicadas na Artforum entre 1966 e 1973. O primeiro critério de seleção desta coletânea, portanto, é quantitativo (foi preciso escolher um ponto de partida para a tradução de sua obra completa). Para ilustrar o segundo, que é conceitual e gráfico, dois exemplos bastam. Algumas matérias-impressas possuem um vínculo mais ou menos forte entre o verbal, o visual e suas qualidades materiais, algo como uma força de coesão interna. Outras excedem essa força de coesão, criando ainda um vínculo preciso com o formato da revista. Em “Cartas”, por exemplo, Smithson utiliza a sessão destinada à opinião dos leitores para fazer uma crítica ao ensaio “Arte e Objetidade”, de Michael Fried, publicado na própria Artforum poucos meses antes. Para além de ocupar uma sessão específica, importa a mudança intencional de sua posição-autor: ocupar a função de crítico-leitor. Já em “Incidentes de Viagem-Especular no Iucatã”, literatura de viagem relacionada a uma série de intervenções efêmeras realizadas no Golfo do México, Smithson fotografa nove variações de um conjunto de espelhos quadrados dispostos ao rés do chão. Não é mera coincidência que tanto os espelhos quanto as fotografias das intervenções repliquem o emblemático formato quadrado do periódico.

Uma palavra sobre a entropia. “Entropia e os Novos Monumentos” constitui a principal fonte textual para o debate a respeito do uso que Smithson faz dessa grandeza, associada à irreversibilidade dos estados de um sistema físico, ao deslocá-la do campo da ciência para o das artes. Para Smithson, artistas como Donald Judd, Robert Morris, Sol LeWitt, Dan Flavin e aqueles ligados ao grupo Park Place dão um contorno idiossincrático à entropia. Ao contrário de seu uso conceitual, eles fornecem um “análogo visível para a Segunda Lei da Termodinâmica, que extrapola o alcance da entropia”, demonstram através da observação direta, e não por explicação, que “a energia é mais facilmente perdida do que obtida e que no futuro último todo o universo irá se exaurir e se transformar em uma mesmice completa”. Parece existir uma capacidade imaginativa armazenada no princípio da entropia que nos leva a pensar que modelos teóricos partilhados entre campos diversos do conhecimento talvez constituam regiões não exploradas de um mesmo problema. Essa análise dos “novos monumentos” sugere ainda que a entropia talvez seja uma condição reprimida na história da escultura e da arquitetura.

Para concluir, direi que a entropia tem duas faces: uma, voltada para nós, e a outra, tal como a lua. Em “Os Monumentos de Passaic”, Smithson traz uma imagem para a flecha do tempo. Uma criança brinca em uma caixa de areia dividida ao meio, com areia preta de um lado e branca de outro. Ela corre na caixa em sentido horário, a areia começa a se misturar, a ficar cinza. Depois, ela corre em sentido anti-horário. O resultado, obviamente, não é a restauração da divisão original, mas um cinza mais intenso. Ou seja, a brincadeira causa um aumento da entropia. Quem sabe a quantidade de interpretações sobre uma obra de arte também cause um aumento da entropia semelhante. Não há melhor tom para representar a fabricação do consenso do que o cinza. Embora o artista, em mais de uma ocasião, nos aconselhe a desconfiar de suas palavras. Parafraseando o filósofo A. J. Ayer, ele diz que “não apenas comunicamos o que é verdadeiro, mas também o que é falso”; ou melhor, “o falso amiúde tem maior ‘realidade’ do que o verdadeiro”. Toda informação tem seu lado entrópico. Como confiar em alguém que batiza uma obra, Quick Millions, com o nome de um filme que alega nunca ter visto? Ele de fato nunca viu o filme? Estaria se referindo ao filme de 1931, dirigido por Rowland Brown, ou ao filme rodado em 1939, de Malcolm St. Clair? Que tipo de espelho do tempo é “Incidentes de Viagem-Especular no Iucatã”, de Robert Smithson, contra “Incidentes de Viagem no Iucatã”, narrativa que conta a história de uma expedição realizada pelo explorador J. L. Stephens em meados do século XIX? Qual o denominador comum entre a apropriação do título do livro de Brian Aldiss, Earthworks [Terratrabalhos], e o uso que Smithson faz do termo para se referir a certa produção tridimensional dos anos 1960 e 1970? entre paisagens desérticas no meio oeste norte-americano e um cenário de catástrofe ecológica, superpopulação malthusiana e campos de trabalho forçado ambientado no continente africano?

O fato é que não apenas um molhe espiral, à mercê de um cataclismo cósmico qualquer, devagar se arruína – toda matéria-impressa está entregue ao pó e às traças.

Antônio Ewbank


   

Fotografia Rasgada da 2ª Parada (Pedregulho). 2nd Montanha de 6 Paradas por Seção,
Robert Smithson, 1970, impressão fotolitográfica, tamanho variável (impressão original 21 1/2 x 21 1/2 pol. [54,6 x 54,6 cm]), de ARTISTS & PHOTOGRAPHS, publicado pela Multiples, Inc.
© Holt/Smithson Foundation.

realização: coleção moraes-barbosa [Pedro Barbosa e Patrícia Moraes] // organização, expografia e design: Antônio Ewbank, Wallace V. Masuko // tradução: Claudia Nogueira // produção executiva e montagem: Cris Ambrosio, Pontogor // arquivo: Karol Pinto, Camila Bigliani // redes sociais: Bruno Baptistelli, Erica Ferrari //recepção: Erika Silva // transporte: Ivanildo José Alves // serviços gerais: Joseane da Silva, Celia Regina Alves Lima // agradecimentos: Lisa le Feuvre, diretora executiva da Holt/Smithson Foundation; Jeff Gibson, editor-chefe da ARTFORUM; editora ébria