Uma cosmogonia periférica: sobre a 6ª Bienal de Arte de São Paulo


Erica Ferrari



Periferia: palavra que nos transporta à complexidade do momento contemporâneo, tão presente no atual pensamento de contínua transformação dos discursos de poder - das cidades, do mundo, da arte.



“Toda a arte moderna inspirou-se na arte dos povos periféricos [...]”1 – com essa clareza de percepção, o crítico Mário Pedrosa2 empreendeu algumas das propostas mais radicais para o circuito artístico institucional brasileiro. Entre elas, a 6ª Bienal de Arte de São Paulo, por ele organizada em 1961, trouxe produções de diferentes [supostas] “periferias”, de variadas épocas, de contextos dos mais diversos – apresentando um conjunto de riqueza estética, simbólica e social que ainda reverbera. Como deve ter sido a experiência de ver lado a lado, um conjunto de afrescos medievais da antiga Iugoslávia, a obra de Kurt Schwitters e esculturas barrocas do Paraguai? Ou a pintura de Clemente Orozco, peças aborígenes australianas e os trabalhos de Pedro Figari? Essa junção de manifestações parece de fato capaz de friccionar os parâmetros do que se pôde julgar até então como arte moderna – entendida como a mais alta criação da sociedade Ocidental.

1. Fala proferida em reunião do Comitê Permanente pela Reconstrução do MAM realizada na Escola de Artes Visuais no Parque Lage, 1978.

2. Crítico de arte, jornalista e ativista político de esquerda. Para uma introdução sobre o pensamento e trajetória de Mário, ler ARANTES, Otília. ‘Mário Pedrosa - Itinerário Crítico’. São Paulo: Cosac&Naify, 2004.








A proposta de Pedrosa para a 6ª Bienal buscava tirar as obras dos artistas contemporâneos do isolamento especializado dos museus de arte moderna, então em voga. Ao acabar com a especialização, contrariava a historiografia tradicional da arte, que impunha a determinados fazeres e objetos o rótulo de “predecessores”: a arte aborígene, hindu, barroca e dos Oitocentos europeu e latino-americano parecem ricochetear nas fotos da construção de Brasília, nos bronzes de Alicia Penalba, no bicho de Lygia Clark.
Já transparecia vividamente como um princípio norteador do pensamento de Pedrosa uma reflexão sobre as origens (periféricas) da arte moderna – ideia  que quase duas décadas depois se revelará integralmente em sua proposta (não implementada) para um Museu das Origens, quando ocorre a reconstrução do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro após o grande incêndio de 19783. Hoje, periferia é a palavra que nos transporta à complexidade do momento contemporâneo, tão presente no atual pensamento de contínua transformação dos discursos de poder - das cidades, do mundo, da arte.

3. Mais sobre o projeto do Museu das Origens em PARRACHO, Sabrina.  ‘Mário Pedrosa e as musas: reflexões sobre crítica e projetos museais’. In: ‘Mário Pedrosa Atual’. Rio de Janeiro: Instituto Odeon, 2019.

No início da década de 1960, a arte em vertentes politicamente engajadas, conceituais e pop despontava como a face metropolitana da cultura, contestatória da linguagem e ancorada no experimentalismo, inflexão de uma sociedade de consumo capitalista. Em um movimento de revisão da própria Bienal, mas também de dilatação dos seus parâmetros, a 6ª edição do evento ofereceu uma cosmogonia própria. No breve texto do catálogo, Pedrosa discorre sobre essa movimentação como “universalidade” e associa essa característica à constituição das nações pós-coloniais da América:



“Tornou-se [a Bienal], pois, sem favor, na atualidade, na manifestação artística de maior universalidade do mundo. Essa universalidade não se traduz apenas no plano político, isto é, no espaço; mas se traduz, também, no tempo [...]. Esse traço de universalidade é cada vez mais característico do ângulo de visão do jovem mundo americano de que somos parte. Daqui, do nosso quadrante, não distinguimos períodos históricos e artísticos privilegiados [...]. Todas as expressões artísticas, do passado ou do presente, sejam do Ocidente ou do Oriente, entram para a formação de nossa sensibilidade e de nossa arte.”4

4. Texto de apresentação do Catálogo da 6ª Bienal de Arte de São Paulo, 1961.

Em uma atualização do conceito de construção de um caráter nacional ou regional, gira-se a espiral não no sentido de deglutir a cultura europeia, como preconizaram os modernistas de décadas anteriores, mas no sentido de balizar todas as produções autóctones, que em primeira instância, foram estopim criativo para as vanguardas artísticas modernistas. Desse modo, há uma sutil, mas importantíssima transformação na qualificação da arte não modernista, não ocidental; o que nos faz entender uma aderência à supressão da noção de evolução histórica e de juízos  qualitativos próprios a uma noção pretensamente universal e unívoca de civilização.

Esse deslocamento era significativo para uma Bienal de Arte que foi idealizada como reflexo do projeto modernista nacional, de um desejo de internacionalização cultural, mas também de valorização da produção local a partir dessa internacionalização. Desde a sua primeira edição em 1951 até a década seguinte,ela consistiria  em uma iniciativa privada, centralizada na figura de um marchand patrocinador preponderante. A 6ª edição de 1961 trouxe o início de uma quebra do modelo vigente do evento até então, tanto no aspecto funcional-burocrático como na relação curatorial. Com a alteração do empresário Ciccilo Matarazzo como único mecenas, a Bienal enfrentou pela primeira vez dificuldades econômicas. Companhias patrocinadoras assumiram o custo de salas, material impresso e projetos pedagógicos, ao mesmo tempo em que as atividades complementares tomaram maior relevância, como as lojas e os estandes publicitários. No catálogo há mais de cem páginas com os anúncios e as dedicatórias das firmas de grande porte que passaram a sustentar a mostra: Esso, Lufthansa, Gessy Lever, Probel, Aerolineas Argentinas, Coral. De algum modo, essas páginas nos remetem ao sonho moderno da união entre a indústria e a arte, entre a produção tecnológica da fábrica e a produção artística humana, tão presente nas propostas dos artistas concretistas, por exemplo. No entanto, todos esses índices, desde a atuação de Pedrosa, até a perda da hegemonia financeira de Matarazzo e a presença empresarial terceirizada, denotam uma profunda crise do modernismo e o início do esfacelamento de seu modo operacional. A descentralização – dos discursos hegemônicos, do capital do grande empresário, do domínio cultural europeu – iniciava seu percurso, tão presente culturalmente hoje.



A obras neoconcretistas tiveram destaque na mostra, com Lygia Clark ganhando o grande prêmio de escultura. “Esse prêmio representa uma ruptura com os cânones tradicionais da arte moderna. Ela traz a apreciação internacional a intervenção revolucionária dos ‘Bichos’, uma construção de planos articulados no espaço por dobradiças e que se armam e se combinam pela ação do espectador. Esse passa a participar, por assim se dizer, da obra. O espectador não sai do cotidiano contemplando, ele sai agindo, fazendo.”5 A ênfase na obra de Lygia parece fechar o ciclo proposto para essa edição da Bienal: subverter a genealogia da arte moderna e apresentar um panorama da criação artística como campo amplo e atemporal, com as relações entre o fazer e a fruição como princípio de atividade. O “outro”, a periferia, o originário, se revelam nas salas especiais dedicadas à produção da Nigéria e da Costa do Marfim, na primeira participação africana no evento, ou na maciça exposição de trabalhos latino-americanos, de países como Colômbia e Chile. Ciccillo Matarazzo, em prefácio do catálogo, enfatiza a participação também inédita de outras nações não Ocidentais, como URSS, Hungria, Romênia e Bulgária, além da grande sala dedicada à caligrafia sino-japonesa, objeto de estudo de Mário Pedrosa. Mas o outro, a periferia, o originário, também se revelam na produção contemporânea brasileira, na abertura e maturidade dos artistas neoconcretos, onde a necessidade descolonizadora se torna urgente e essencial. Necessidade ainda relevante, cuja manifestação estética e política tomou outros contornos frente aos desafios contemporâneos.

5. PEDROSA, Mario. “‘A Bienal de Cá para Lá”’, in Pedrosa, Mário. ‘Mundo, homem, arte em crise’. São Paulo: Editora Perspectiva, 1975.