Regina José Galindo


Texto de Tom Nóbrega
Cris Ambrosio e Pontogor (org.)

abertura 9 de fevereiro 2023
17h às 21h

visitação 10.02 - 15.04.23
quarta a sexta, das 13h às 19h
sábados das 11h às 19h

entrada gratuita

travessa dona paula, 120
são paulo - sp




La Verdad, 2013

vídeo HD em loop
70’ 39“


El objetivo, 2017

vídeo HD em loop
7‘ 40”


America’s Family Prison, 2008

vídeo HD em loop
56’ 49”


vire as costas para o passado. coloque os dedos na dobradiça da porta e feche-a com gosto, como se assim você vedasse a passagem do ontem1


efraín ríos montt morreu aos 91 anos / “faleceu em sua casa, com o amor de sua família, com sua consciência sã, limpa, rodeado de muito amor, acometido pelas doenças que já sabemos e com a convicção que neste país nunca houve genocídio e era inocente do que foi acusado”2, anunciou seu advogado luis rosales / ríos montt  foi condenado por genocídio, em 2013, apenas para ter sua sentença anulada pela corte constitucional alguns meses depois / nos dezessete meses em que foi presidente da guatemala, depois de dar um golpe de estado, entre 1982 e 1983, se estima que cerca de 10000 indígenas foram mortos em execuções extra oficiais / o general de reserva, que destruiu 600 vilarejos maias, depois de recorrer da sentença, nunca chegou a passar por um novo julgamento / “o verdadeiro cristão carrega a bíblia sagrada em uma mão e uma metralhadora na outra”³, disse ríos montt naquela que se tornaria sua frase mais célebre / evangélico pentecostal convertido, era um dos líderes da congregação chamada “el verbo” /

1  GALINDO, Regina. Eu não sou a Pizarnik, tradução de Julya Vasconcelos. Recife, 2021: Edições Flecha, p. 93.

2 José Efraín Ríos Montt, ex-ditador da Guatemala, morre aos 91 anos. Portal G1, 01/04/2018. Ver


3 TORTAMANO, Caio. “Verdadeiro cristão carrega a bíblia em uma mão, e a metralhadora na outra: os horrores do ditador Efraín Ríos Montt.” Portal Aventuras na História, 17/03/2020. Ver

a palavra anistia e a palavra anestesia têm as mesmas raízes / ambas têm origem no grego antigo αν-, an-, "ausência"; e αἲσθησις, aisthēsis, "sensação"  / cada vez que se tenta bloquear a dor, as outras sensações também são entorpecidas / cada vez que se promove o esquecimento, qualquer estética se borra ou se estilhaça / uma das definições de anestesia é “ausência de consciência reversível” /  frase que, se por um lado nos lembra que o torpor causado por anestésicos não possui duração indefinida, por outro, sinaliza que a anistia produz ausência de consciência histórica / quando a gente age sem olhar para as ausências deixadas para trás, a gente permite que os fantasmas vociferem e as mortes se repitam / se a anestesia provoca uma ausência de consciência total ou parcial dos membros de um corpo, que pode também ser um corpo social, a anistia provoca uma falta de consciência da ausência / a anestesia é um bloqueio induzido dos nervos, que provoca perda de responsividade, perda de reflexos,  diminui nossa resposta a golpes e ataques /  

minha infância na guatemala transcorreu de maneira confortável em uma casa de classe média baixa da zona 3. se falava muito pouco ou nada da guerra. na verdade acho que só escutei algo a respeito depois que uma bomba explodiu perto do meu colégio na zona 14
 4 Fragmento de entrevista de Regina José Galindo a Viviana Siviero. In: SAVORELLI, Livia (org.) Regina José Galindo. 2006: Vanilla Edizioni, Roma.
“sem anistia”, gritava a multidão diante do palácio do planalto no dia primeiro de janeiro, em brasília, uma semana antes de que outra multidão, que havia passado dois meses dormindo em quartéis pedindo intervenção militar, quebrasse as vidraças do planalto, do congresso e do supremo tribunal federal, atirando cadeiras para longe e perfurando as telas dos quadros / a lei da anistia, sancionada em 1979 por joão batista figueiredo, último general a ser presidente do brasil no período da ditadura militar, ao mesmo tempo em que permitia o retorno dos exilados políticos, garantia a imunidade dos torturadores / segundo o relatório da comissão nacional da verdade, que 2011 e 2014 reuniu diversos depoimentos a respeito da ditadura empresarial-militar brasileira, no período entre 1964 e 1985,  ao menos 8.350 indígenas foram mortos em “massacres, esbulho de suas terras, remoções forçadas de seus territórios, contágio por doenças infecto-contagiosas, prisões, torturas e maus tratos”5 /
5 “Comissão da Verdade: ao menos 8,3 mil índios foram mortos na ditadura militar”. Portal Amazônia Real, 11/12/2014. Ver 

a realidade se escondia, não importava, era algo que acontecia no interior do país, que envolvia o exército, a guerrilha e os indígenas... e a gente não pertencia a nenhum desses grupos. É assim que pensa a classe média guatemalteca; ela está e sempre esteve à parte, afastada da verdade, sempre vivendo com os olhos fechados, fazendo de conta que não sabe (...) um grupo anestesiado por suas próprias mentiras e sua inconsciência6. 

todo o teu trabalho pode ser descrito como uma tentativa de romper o torpor, reverter a inconsciência / você começa pela poesia, pela palavra, mas logo se dá conta de que em um lugar assolado pelo genocídio não é possível falar sem antes chegar perto daquilo que não se ouve, que lateja silenciado / não há estética possível sem que se rompa a indiferença / você coloca nosso olho na lente objetiva, nos lembra que permanecer indiferente é brincar de tiro ao alvo
6 Idem ibid.

colemos a língua no congelador, treinemos para o silêncio7 / você monta uma cena em que tua boca é invadida por uma luva de látex durante a leitura de uma série de depoimentos / você nos lembra da assepsia legitimada dos tribunais que tentam barrar os testemunhos / dessa vez, aquele que abre a tua boca, usando roupas azuladas de hospital, segue instruções tuas / você nos lembra da invasão disfarçada por trás de toda assepsia / nos containers de detenção norte-americanos, destinados aos latinos que ousam cruzar a fronteira / reina uma assepsia semelhante àquela que impera nos aeroportos, hospitais, museus e galerias de arte / num espaço em si mesmo anestesiado, você lança mão da tua brutalidade alegórica para assinalar a anestesia, romper com a indiferença / a morte não tem metáfora / é simples e clara / você deixa de funcionar / fica teso / no meio de tudo8 / tuas alegorias vivas e tensas procuram apontar para a nossa indiferença em relação àqueles que não estão aqui /
7 GALINDO, Regina. Eu não sou a Pizarnik. Op. cit., p. 19 8 Idem ibid., p. 39.
um depoimento não é um poema / depoimento é coisa paradoxal: nele, as palavras sinalizam ausências, mas só podem ditas, lidas e ouvidas por aqueles que estão vivos / não estou morta / a tinta / existindo no papel / me confirma9 /  “estou viva”, afirma uma mulher indígena ao dar seu depoimento no julgamento de ríos montt / em uma de suas entrevistas, você nos lembra que, embora a condenação do general tenha sido anulada, algo de fundamental se passou no seu julgamento / as mulheres sobreviventes afirmaram sua vida diante do agressor / narraram a truculência das violações, apontaram para o mandante, foram ouvidas pelos indiferentes, tiveram suas palavras registradas por escrito / um depoimento desafia o trauma / subverte as palavras para apontar para uma dor que não pode ser verbalizada, nomeada ou simbolizada / os relatos nos aproximam daquilo que não vimos, daquilo que não pode ser dito / o buraco de sentido aberto por uma brutalidade que não pode ser legitimada
9 Idem ibid., p. 41.
sou lugar comum10, você diz / você sabe bem que não pode estar no lugar das vítimas, a não ser como signo / sabe também que alguém precisa fazer o trabalho sujo, o exercício impossível de se colocar no lugar do outro / você faz o gesto arriscado não apenas de se transformar em corpo signo, mas também mão que escreve, boca que fala / você não se coloca apenas no lugar da vítima, mas no lugar do mandante, daquele que planeja a cena / você apresenta teu corpo como substituto de algo que é intolerável / reencena aquilo que não pode ser nomeado / ao colocar nosso olho no visor da arma, você assinala as posições, arquiteta a cena, estuda as formas de se colocar como alvo / há quem aponte o celular para o visor da arma, há quem filme o espectador que enquadra a mira do fuzil / mira dentro da mira, mira metalinguística / você cria recortes dentro dos espaços de arte para sinalizar zonas de privilégio e zonas de abjeção / corpo signo corpo substituto / índice das pegadas de sangue cujos trajetos efêmeros circundam os prédios públicos /

Tom Nóbrega


10 Idem ibid., p. 45.
realização coleção moraes-barbosa [pedro barbosa e patrícia moraes] // organização, produção executiva e expografia: cris ambrosio, pontogor // texto: tom nóbrega // cartaz: camila bigliani, pontogor // maquete 3d: pontogor // montagem: cris ambrosio, pontogor // transporte: ivanildo josé alves // tradução e legendagem: cris ambrosio // redes sociais: bruno baptistelli, erica ferrari // recepção: erika silva // serviços gerais: joseane da silva, celia regina alves lima // arquivo: karol pinto, leila zelic // impressão: gráfica cinelândia // adesivagem: omamulti // agradecimento: deyson gilbert